Academia Brasileira de Letras dá continuidade à série de
Seminários “Brasil, brasis” de 2018 com o tema Literatura e mercado, sob
coordenação geral do Acadêmico, professor, escritor e poeta Domício Proença
Filho (quinto ocupante da Cadeira 28, eleito em 23 de março de 2006), e
coordenação do Acadêmico e romancista Antônio Torres (oitavo ocupante da
Cadeira nº 23, eleito em 7 de novembro de 2013). Os convidados para participar
do evento são a Presidente do Grupo Editorial Record, Sônia Machado Jardim e
o jornalista, escritor e editor Paulo Roberto Pires. O evento está
programado para o dia 30, terça-feira, às 17h30, no Teatro R. Magalhães Jr.,
Avenida Presidente Wilson 203, Castelo, Rio de Janeiro.
O Seminário Brasil, brasis, com entrada franca e transmissão
ao vivo pelo Portal da ABL, tem patrocínio do Bradesco.
OS PARTICIPANTES
Graduada em Engenharia Civil pela UFRJ, Sônia Machado Jardim
tem Pós-Graduação em Finanças na IAG-PUC/Rio, além de cursar o Mestrado em
Administração de empresas na COPPEAD.
Trabalhou por mais de 10 anos em empresa de engenharia antes
de ingressar, em 1995, como Diretora Administrativa-Financeira na editora
Record – empresa fundada por seu pai, o editor Alfredo Machado, em 1942, e que
se tornou um dos maiores conglomerados editoriais da América Latina.
Sônia Machado Jardim foi Presidente do Sindicato
Nacional de Editores de Livros (SNEL) entre 2008 e 2014, do Instituto Pró-Livro
(IPL) entre 2009 e 2011 e da Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL)
entre 2011 e 2014, período em que atuou pelo fim da censura às biografias, pela
imunidade tributária dos livros digitais e liderou a realização das bienais
internacionais do Livro do Rio de 2010, 2012 e 2014. Desde 2016, é presidente
do Grupo Editorial Record.
Paulo Roberto Pires é jornalista, escritor e editor.
Professor da Escola de Comunicação da UFRJ, edita a serrote, revista de
ensaios do Instituto Moreira Salles, e é colunista da revista Época. É
autor das biografias Hélio Pellegrino – A paixão indignada (1998)
e A marca do Z: a vida e os tempos do editor Jorge Zahar (2017) e dos
romances Do amor ausente (2001) e Se um de nós dois morrer (2011).
Trabalha atualmente numa biografia de Millôr Fernandes.
Queria acompanhar um enterro e ver pela primeira vez como
era que enterravam o defunto no cemitério. O enterro às vezes passava pela rua
do comércio. As pessoas cabisbaixas atrás seguiam o caixão com o defunto, que era
levado pelos homens mais jovens. Quando cansavam, revezavam-se. Outros homens
seguravam agora nas alças do caixão, e o cortejo prosseguia em silêncio na rua
de chão batido. Contornava a rua do comércio, rumo ao cemitério.
Gente parava nos passeios, tirava o chapéu em sinal de
respeito ao morto, curiosos apareciam na porta das lojas. Ficavam olhando o enterro passar com as
pessoas tristes. Algumas levavam flores nos braços, os parentes e amigos do
morto. Quando era enterro de criança, meninos e meninas acompanhavam o cortejo
à frente do caixão, vestidos como anjo num camisolão de cetim branco, uma coroa
de flores na cabeça. Tinham asas feitas com penas de galinha, presas às costas.
Levavam flores alvas e cantavam canto de igreja com os pequenos corações contritos.
A primeira vez que vi um enterro de criança soube então que
menino como eu também morria. Ia para o céu, claro, o padre dizia isso na
missa, que Jesus gostava muito das crianças porque eram puras, não tinham os
pecados de gente grande.
Mas o que era a morte, comecei a indagar lá em casa. A mãe
falou que era uma mulher feia, mas quem acreditava em Jesus e seguia os
preceitos que o filho de Deus ensinava não devia temê-la. Quando ela chegava
para carregar uma pessoa para o além, que é o outro mundo, quem foi bom aqui
nesta terra, não cometeu pecado pesado, vai ter o seu anjo de guarda para levar
a alma para morar na casa de Nosso Senhor. Quem foi mau, cometeu os piores
pecados, como matar o semelhante, a morte leva a alma dele para o fogo do inferno.
Quem foi ora bom, ora mau, vai ser levado para o purgatório, uma espécie de
lugar onde a alma fica sofrendo pelos pecados menos pesados que cometeu até se
purificar e alcançar o perdão de Deus.
Tudo isso que a mãe explicava sobre a morte podia ter sua
verdade e até me convencia em parte sobre o que essa mulher feia gostava de
fazer a cada pessoa que levava para outras terras... Só não gostava quando
perguntava se um menino depois de morto podia voltar de novo para brincar com
os amigos aqui na terra, e a mãe revelava que nunca ninguém soube que isso já
havia acontecido um dia.
- Então a morte que vá comer bosta de galinha! – dizia eu,
fazendo com que minha mãe desse uma boa risada.
Quando perguntava ao pai o que era a morte, ele prontamente
dizia que com ele a bicha imunda não viesse se fazer de prosa. A taca de couro
grosso estava ali mesmo guardada no baú para dar umas boas tacadas na
indesejada, se ela algum dia entendesse de querer lhe fazer uma visita.
Sorria agora eu, satisfeito com a coragem que o pai
demonstrava para fazer correr a morte, se ousasse aparecer lá em casa, ia
receber na mesma hora uma boa surra aplicada nas costelas dela com a taca de
couro grosso.
Naquele dia resolvi acompanhar o enterro que passava pela
rua do comércio com poucas pessoas. No início acompanhei de longe,
precavendo-me para que algum amigo de meus pais não me visse e fosse contar
depois o que eles certamente não aprovariam. Ficariam zangados e me colocariam
de castigo. Proibido de brincar com os amigos por vários dias.
Quando da ladeira em que o enterro subia vagaroso se avistou
o muro do cemitério, aproximei-me por trás das pessoas que participavam daquele
cortejo calado, com seus ares tristes. Pouco depois, entrava com o enterro no
cemitério, que eu via pela primeira vez e que me deu com seus ares sombrios um
frio na barriga, como nunca tinha sentido. Tímido passei os olhos pelas
galerias com muitas gavetas tapadas com tijolos, pintadas de cal. O nome do
falecido inscrito em cada gaveta. Observei capelas com retrato dos falecidos lá
dentro, escultura de homens importantes em cima dos mausoléus de mármore. Lá
embaixo, a terra cheia de cruzes indicava covas rasas, provavelmente ali os
pobres eram enterrados. Foi para lá que o enterro se dirigiu.
A cova já estava cavada num buraco para receber o caixão com
o morto. Antes de descerem o caixão, a mulher de cabelos brancos, num vestido
pobre, pediu que tirassem a tampa. Queria ver o marido pela última vez. Ela
passou a mão no rosto do morto, que estava preto feito carvão, os olhos
fechados. A mulher começou a chorar alto. Esperei que descessem devagar o
caixão no buraco, , estava amarrado com cordas grossas pelas alças...O coveiro
jogou depois pás de terra, que aos poucos foi enchendo o buraco. A mulher
continuava a chorar alto. Comecei também a chorar e, antes que ouvissem meu
choro, fui saindo dali nervoso, tropeçando nos passos.
* Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro efetivo da
Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
Marcos.
— Glória a vós, Senhor.
Naquele tempo, Jesus saiu de Jericó, junto com seus
discípulos e uma grande multidão. O filho de Timeu, Bartimeu, cego e mendigo,
estava sentado à beira do caminho. Quando ouviu dizer que Jesus, o
Nazareno, estava passando, começou a gritar: “Jesus, filho de Davi, tem piedade
de mim!”
Muitos o repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava
mais ainda: “Filho de Davi, tem piedade de mim!” Então Jesus parou e
disse: “Chamai-o”. Eles o chamaram e disseram: “Coragem, levanta-te, Jesus te
chama!”
O cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus. Então
Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Mestre,
que eu veja!” Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”. No mesmo instante,
ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho.
Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Frei Alvaci
Mendes da Luz:
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Tecendo olhares
“Mestre, que eu veja”!’” (Mc 10,51)
Continuamos fazendo caminho com Jesus, rumo a Jerusalém.
Estamos na última cena, antes de entrar na “cidade santa”, onde acontecerão os
mistérios centrais da nossa fé: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
Detenhamo-nos em alguns detalhes que o evangelista Marcos
deixa transparecer no evangelho deste domingo, para uma maior assimilação do
modo de ser e agir de Jesus.
O cego Bartimeu é o símbolo da marginalização: está fora do
caminho, jogado na sarjeta, sem poder se locomover, percebendo como os outros
vão passando por ele, dependendo deles, de suas esmolas e de seus cuidados,
porque não podia fazer outra coisa. Trata-se de um homem na beira do caminho,
que vive às custas da bondade ou da maldade dos outros e, na maioria das vezes,
à mercê da indiferença de todos; um homem sem ofício nem benefício e sem
serviços sociais que o sustentassem ou o acompanhassem; um ser humano de quem
ninguém queria se aproximar porque era tido também como impuro; um cego sem
companhia, sem possibilidade de ser amado, habitando na solidão física e
psíquica, com o agravante de sentir-se julgado e culpado, sem possibilidade de
defesa, porque a sentença já era pública.
A situação de Bartimeu já estava determinada, ou seja, a
exclusão; ele aparece aqui como alguém consciente de sua situação desesperada,
de seus limites e de que sozinho não poderia superá-los. Mas não fica resignado
com sua situação; este é o ponto de partida. Daí o grito por compaixão, quando
percebe que Jesus passa por perto.
Como cego, não tem outro meio de chamar a atenção de Jesus
senão gritando. Muitas pessoas próximas se irritam e o mandam calar a boca, mas
ele o chama mais alto ainda. Ele investe toda sua força nessa oportunidade
única e vai até Jesus, expressando assim sua alegria em encontrá-lo e em
receber a sua ajuda.
Jesus é aquele que ouve, para e chama justamente aquele cego
cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia.
Ele interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Os dois
ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem
hesitar: sua proteção, sua segurança, seu teto..., e entra na luz do olhar de
Jesus. Sai de seu fechamento (o manto era considerado um prolonga-mento da
pessoa); desfaz-se do que lhe trazia segurança e recupera sua dignidade:
“pôs-se de pé”.
Ao lhe perguntar - “o que queres que eu te faça?” -, Jesus
está ativando o protagonismo no outro, estabelecendo um diálogo de tu a tu, sem
intermediários, oferecendo-lhe a possibilidade de afirmar-se diante de alguém,
de ter uma palavra que é escutada (não só um grito que se instala como música
de fundo para os transeuntes indiferentes), de expressar os desejos de seu
coração, de “empalavrar” suas aspirações e esperanças. O espaço de diálogo
experimentado devolve ao cego a confiança, conecta com suas forças resilientes,
lhe confere autonomia e o mobiliza a entrar no caminho de Jesus.
A capa que antes acompanhava o cego e o protegia, agora é
abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem
que ela representa é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas
Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo,
seguidor. Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo olhar,
salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a pedinte
da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à
transformação.
Bartimeu viveu a experiência de uma profunda “travessia”:
antes, cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola; agora, com a visão
recuperada, pode fazer a sua escolha: “...e seguia Jesus pelo caminho”. Esta
frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com
Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do
afastamento à proximidade...
Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se
tornou estrada; o estranho se tornou familiar; a liberdade se tornou gratidão;
a exclusão se tornou seguimento...
Ao “fixar seu olhar” em cada um(a) de nós, chamando-nos pelo
nome, seremos movidos(as) a fazer eleições mais radicais e integrais pelo Reino,
segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora
de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus ressuscita o nosso olhar
tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo
dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis
e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual plural com amor, com
entusiasmo e criatividade.
Precisamos suplicar como o cego do relato de Marcos:
“Mestre, que eu veja!”, para poder reconhecer e agradecer, descobrir portas
onde antes víamos muros. Hoje somos afetados por muitas cegueiras: não vemos
aqueles que economicamente não são contados, e há milhões de pessoas
consideradas invisíveis.
Estamos ameaçados pela cegueira da segurança, da
intolerância, do preconceito..., e aqueles que são diferentes nos parecem
estranhos. As telas frias dos aparelhos eletrônicos tiram o brilho e o calor de
nosso olhar e petrificam o nosso coração. Vivemos cegos pela pressa e pelo
auto-centramento; e as rupturas humanas, as divisões e o ódio, embotam nossos
sentidos e nos cegam a respeito de nossa unidade essencial.
É preciso deixar que o Evangelho e os outros vão nos tirando
as vendas, vão nos curando a visão, vão nos despertando para que possamos
chegar a ser homens e mulheres de olhos grandes, que contemplam a vida em sua
profundidade e em sua vulnerabilidade, e também em suas infinitas
possibilidades.
Sabemos que toda a realidade nos entra pelas janelas de nossos
olhos. Cultivar a espiritualidade em nossa vida cotidiana tem a ver com
aprender a olhar de outra maneira, e aprender a observar sem qualificar, sem
medir, sem emitir juízo, simplesmente, recebendo o que existe, deixando-o ser,
dando-lhe espaço.
Uma visão sadia, é aquela que sabe ver o outro no melhor de
si mesmo, em seu mistério único, em sua originalidade, em todo seu potencial
latente ainda por acontecer; e que sabe também aceitar suas arestas, sua parte
de sombra, sem rejeitar nada. Um olhar que descobre uma sensibilidade por
debaixo da aparente aspereza, que reconhece a benção que se oculta por detrás
da ferida. Um olhar amável e incondicional que oferece o espaço para que os nós
existenciais comecem a se desatar e a vida possa fluir.
Que possamos olhar através dos outros e ativar dentro de nós
aquela bem-aventurança: “Ditosos vossos olhos porque vêem” (Mt 13,16).
A oração é o ambiente natural para mobilizar-nos, expandir
nosso olhar e preparar-nos para o grande salto da vida: um novo projeto, um novo
compromisso, uma nova missão...
Texto bíblico: Mc 10,46-52
Na oração: Chegaremos algum dia a aprender, como Jesus, a
olhar através dos olhos dos simples e pequenos deste mundo?
Quando nos abrimos a outros olhares, quando chegamos a poder
olhar pelos olhos daqueles que estão em um lado da vida diferente do nosso,
expande-se em nós a capacidade de perceber e agradecer a realidade.
Nosso modo de olhar depende do lugar onde pisamos: olhar
burguês, olhar preconceituoso, olhar intolerante...
- Faça um pequeno exercício de “olhar a si mesmo” com o
olhar do pobre, do excluído, daquele que pensa e sente diferente... Como você
se sente?