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sábado, 27 de junho de 2020

PESADELO – Ariston Caldas

 
          Cecílio estava quase decidido, abandonaria Mildes; para isso ele fez indagações, comparativos, hipóteses; mediu os prós e os contras e não encontrou outra saída. Certeza sobre alguma coisa grave, nenhuma, mas uma dúvida renitente cavava seu juízo, dando-lhe quase a certeza, a justificativa para sua desconfiança. Sobre o quê? Perguntava-se às vezes. Ora, de verdade, só a indiferença de Mildes para com ele, notadamente naqueles momentos; ela embuchava, cobria-se cabeça e tudo, inventava lorotas, dizia-se cansada, isso e aquilo; nem conversava mais na hora de dormir, como fazia antes. Quando tudo começou assim, Cecílio deu até seus descontos, “coisas de mulher”, pensou. As cenas foram-se repetindo e um dia ele desconfiou. Doença, não era, Mildes continuava forte e rosada, bonita e disposta o dia inteiro. Em algumas oportunidades ele tentava fazer mão boba. “Me deixe, homem”, ela repelia. Vinham os resmungos e ele perdia as estribeiras; sem outro jeito ele calava a boca e ficava de olho duro para o telhado, articulando pensamentos.

            Antes de outras providências, iria para a casa da mãe dele, depois cuidaria da separação judicial. Em casa da mãe teria que arrumar uma empregada pala lavar pratos, e outros afazeres miúdos. Dona Elza estava idosa, cansada, cheia de mazelas.

            Enquanto tudo isso passava por sua cabeça, Mildes respirava encolhida a um canto da cama, virada para a parede; o rosto dele queimava, o miolo se alvoroçava, os nervos rebentando; o telhado parecia-lhe opressivo, as paredes manchadas lembravam-lhe um quarto de bordel e Mildes se assemelhava a uma prostituta; até o perfume exalando do corpo dela lembrava isso; ele sentia o cheiro subindo, ativo, ordinário, diferente do bom perfume que ela usava sempre. Por uma greta da janela ele sentia a noite clara, lembrou que era lua cheia.

            Recordou do casamento com Mildes, ela toda de branco, grinalda; a igreja do bairro iluminada a gosto, os convidados, os amigos, o coral. Mildes havia mudado muito, e agora, com aquela mania, virou uma peste. Quando aproximava-se a hora de dormir, parecia-lhe um suplício. “Que devo fazer?” Arriscava uma futucada de leve, cheio de acanhamento. “Chegue pra lá”, era a reação dela. Andava, virava, ele enchia-se de resmungos, ficava bruto, pronunciava-se aos berros. Mildes espreguiçava-se, virava para a parede, e o que seria bom ficava para outra vez.

            A partir da constância desse episódios, ele passou a maldar coisas, chegando à certeza de que estava sendo traído. Como passaria sem Mildes? Chegavam-lhe ideias absurdas, como a de praticar um crime. Mataria qualquer sujeito. Depois afastava essa possibilidade. A separação seria bem melhor, mesmo sabendo difícil suportá-la. Várias noites nessa angústia, o juízo embaralhado entre hipóteses absurdas. Lembrava de um punhal antigo que pertencera a um avô de Mildes, guardado como relíquia. Vez por outra ele via o punhal numa gaveta do guarda-roupas, prateado, inoxidável, numa bainha de couro bordada a fogo. Numa dessas noites ele levantou-se cheio de perturbações lembrando do punhal; Mildes, de sono solto, respirava tranquila, um seio descoberto e branco entre a turvação do quarto, os olhos fechados às vezes vibrando levemente, a boca ainda com a pintura de depois do banho. Sem resistir ao quadro, Cecílio passou a farejar os cabelos dela derramados pelas bordas do travesseiro; o fez receoso temendo que Mildes se assustasse. Depois, saiu devagar, macio, em direção ao guarda-roupas; apanhou o punhal na gaveta e lembrou do avô de Mildes que teria sido um sujeito com bigode de pontas viradas, sisudo, cabelo anelado partido ao meio. Ela continuava dormindo, respirando tranquila, um peito branco de fora, os cabelos espalhados pelo travesseiro, exalando perfume ordinário. “Tá ficando doido, homem, me solta!” Ela exclamou assim num balbucio estridente e confuso, dando uma cotovelada no peito dele que acordou de supetão, todo embaralhado. “Você viu onde deixei minha carteira de cigarro?” Disse ele ainda atordoado, e afastou-se zonzando, conseguindo dormir novamente.

            Voltou a sonhar, agora trocando tiros com um sujeito cabeludo parecido com um tal Miranda, dono de uma academia de ginástica, que morava em frente e gostava de andar numa moto vermelha. No sonho o sujeito empunhava um revólver e tinha à cintura um punhal igualzinho ao que pertencera ao avô de Mildes.

            Cecílio passou a noite assim entre pesadelos medonhos. No dia seguinte teria que resolver sua vida, encostaria Mildes à parede, decidindo tudo. Não fez isso no dia seguinte nem mais nunca. Ninguém sabe como ele conseguiu normalizar a situação. O casal reside na mesma rua, em frente à casa onde morou o dono da academia.

           
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas

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