(Torcer para a França: mas e as obras pilhadas do Louvre?
Querer bem à Croácia: mas e a apologia ao nazismo?)
A França tem Paris, Rodin e Michel de Montaigne e ainda quer
triunfar no futebol. Nem pensar, torcerei para a Croácia, firmei assim que os
quadriculados alvirrubros dos Balcãs derrotaram a Inglaterra e se garantiram na
final da Copa do Mundo.
No dia seguinte li no “Estadão” que torcedores croatas
fizeram a saudação nazista no estádio, durante a semifinal, e virei a folha,
com um grito na janela: allez les bleus.
“Pergunte aos argelinos se a França é assim tão libertária,
ouvirá casos de perseguições e torturas”, ouvi um professor de história
franco-argelina na televisão e voltei a torcer para a seleção do goleiro
Danijel Subasic, apesar do segundo esse de seu nome ostentar em cima um acento
circunflexo de ponta-cabeça, estranheza para a qual meu teclado nem está
preparado.
Abri meu Yahoo e recebi de jornalista italiano,
correspondente no Irã, “link” para um site de Oslo, na Noruega, informando que
o meio-campista Luka Modric foi acusado de cometer perjúrio num acordo
financeiro entre ele e Zdravko Mamic, ex-diretor do clube Dínamo Zagreb
investigado por fraude fiscal. Irritei-me e, por 48 minutos, voltei a virar
francês desde criancinha, condição que descartei logo porque entrou no meu
Whats’App, mandada por membro da tribo K’llooo ga kri, no sul da Etiópia,
notícia de que o mesmo Modric acusado de mentir à Justiça de seu país doa parte
do salário que recebe no Real Madrid para comprar pernas mecânicas doadas a
crianças mutiladas em guerra. Depois dessa, só posso ser Croácia, pus fé.
Amigo meu radicado na holandesa Bourtange, porém, me mandou
seis vídeos mostrando croatas gozando o Brasil pela desclassificação nas
quartas de final. Parodiavam “Garota de Ipanema” e rolavam no chão, mencionando
jocosamente nosso camisa 10, com tamanha arrogância que jurei a partir daquele
instante empreender grande empenho espiritual para Kyllian Mbappé enfiar
quatros gols na final e comemorá-los com dancinha irritante, ao lado de Paul
Pogba e Samuel Umtiti. Fui dormir muito francês.
Bateu insônia, liguei o “tablet” para distrair e li texto
publicado no Facebook por um monge no alto da montanha Pico de Adão, no Sri
Lanka: “A presidente da Croácia, Kolinda Grabar-Kitarović, viajou para a Rússia
com dinheiro do próprio bolso”. Gente da política viajando sem atolar a mão na
grana do contribuinte? Dado tão impressionante para um brasileiro que só me
restou querer bem a esse povo no último jogo do mundial. Agora é sério, não
viro mais a casaca, chega, tudo tem limite.
Pensei que seria assim, mas voltei a gritar “avante, azuis”
após me emocionar ao ver o Jornal Nacional contar que o volante N’Golo Kanté,
quando menino, recolhia lixo nas ruas de Paris. Reiterei o incentivo sonoro ao
me lembrar de dois franceses que empreenderam em Itabira: Raoul de Caux, que
veio, viu e fez vinho; e Sarah Pauline Charlotte Marie Gayetti, que mudou o
nome para Madre Maria de Jesus e fundou o Colégio Nossa Senhora das Dores,
educandário que até outro dia tinha o colonizado hábito de tocar a Marselhesa –
escutava do meu quintal, quando morei na Penha: "Allons enfants de la
Patrie / Le jour de gloire est arrivé!"
“Torcerá para a França mesmo sabendo que o Louvre tem em seu
acervo peças originárias de pilhagens da época de Napoleão Bonaparte?”, gritou
um anjinho em meu ombro, trajando camisa assemelhada a tabuleiro de damas. “Mas
após o cujo se lascar na batalha ali perto de Waterloo, parte das obras foi
devolvida aos países”, argumentei, e ouvi: “Você disse bem: parte, não toda. O
Egito, por exemplo, nada recuperou. Você, Marcos, como jornalista, tem
obrigação de saber que os nazistas se inspiraram nesse militar francês para
também saquear obras de arte em países dominados”. Quando abri a boca para
novamente confrontá-lo, o diabo do anjinho apelou e me convenceu a canalizar
toda energia à seleção dele. “Esqueceu, Marcos, que há galos azuis na camisa da
França?” Heréticos galos azuis, nem Francisco de Goya imaginou tamanho horror.
Galo azuis, a maior tragédia depois do dilúvio. Fui dormir muito croata.
Situação alterada radicalmente depois que vi, pelo
Instagram, na hora do café da manhã, fotografia postada em Kobe, no Japão, de
um muro de prédio público pichado em Zagrebe: “Proteja a Floresta Amazônica:
queime um brasileiro”. Aí, já sabe, né? Não que eu seja muito influenciável…
Lyon aumentou o preço do pão – viva a Croácia. Em Zadar
taxista foi espancado por jovens ultranacionalistas – avante, França. O
treinador Zlatko Dalic não quis salário para comandar a seleção – vamos,
Croácia. Em Rijeka, berço do lateral-direito Sime Vrsaljko, tremulam bandeiras
de cunho racista – dá-lhe, França. Casa em Montpellier, vi pelo Google Earth,
exibe faixa fazendo pilhéria com a matriz africana da seleção de Didier
Deschamps – vai, Croácia. Telão em Sibenik mostrou jogadores croatas cantando
Bojná Cavoglave, música da banda Thompson, acusada de fazer apologia à
organização paramilitar fascista Ustasha, atuante na Segunda Guerra Mundial...
Vai pra lá, volta pra cá, comuniquei à família que nossa
televisão será desligada na hora de Croácia x França. Assim, ficarei em paz com
minha consciência cívica. Foi aí que Aninha surgiu na sala, vinda do quarto
dela, onde penteava sua nova boneca: “O mais repulsivo dos covardes é aquele
que, em tempos sombrios, opta pela neutralidade”. Essa santinha do pau oco
oculta textos de filosofia e de ciência política na barriga da Barbie, só pode.
Desconectei todos os plugues, tirei o relógio e fui
caminhar, começando a sentir arrependimento por ter torcido para Neymar Júnior,
Philippe Coutinho e Gabriel Jesus. Brasil, um dos últimos países que aboliram a
escravidão.
(Marcos Caldeira, editor do jornal "O Trem
Itabirano", de Itabira, MG.)
* * *