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quarta-feira, 12 de julho de 2017

A PALAVRA MOCAMBO E OS DICIONÁRIOS BRANCOS - Davi Nunes

A palavra Mocambo e os dicionários brancos 


O dicionário é o inventário dos signos, a vitrine escritural onde as palavras eleitas estão à vista como roupas sofisticadas nos mostradores dos shoppings centers. Talvez seja isso mesmo, mas nem tanto. Nunca gostei muito das palavras de origem africana no dicionário dos brancos: significados e significantes carcomidos pelo enredar do racismo. Nosso corpo-palavra destroçado por abutres com óculos e títulos a deixarem só ossos, sangue e miséria no terreno das nossas significações.

Falo isso porque sempre gostei de uma palavra, não lembro nitidamente quando foi que a ouvi pela primeira vez, acho que foi com minha falecida avó, Xanda, ela estando na casa da minha mãe, Maria, falou: “Quero dormir no meu mocambo” e me chamou para levá-la à sua casa. A palavra mocambo ressoou nos meus ouvidos com tanta intimidade e poder que pude senti-la por todo o meu corpo e pude conceber toda a sua significação naquele momento.

Talvez aí surgiu o poeta, o estro original que compõe todas as demais inspirações. Pode ser. Entendi logo: o que ela falou para minha mãe não poderia ser pronunciado com a palavra casa, era um vocábulo fraco, deslocado, não cabia em sua morfologia, em sua sintaxe, em sua fraseologia afetiva e mágica. Mocambo para vovó era o quilombo íntimo, onde os filhos e os netos lhe rodeavam, e poderia estender toda a sua zanga, dengo e saberes, ordenando só com o olhar a dinâmica do lar, que se alargava à comunidade e tudo isso compunha toda uma forma de organização matrilinear.

O mocambo era palavra poderosa saída da boca da minha ancestral, tinha substância vivencial, mas quando fui ler seu significado no dicionário, aprendi que as leituras desses verbetes, mefistofelicamente, poderiam derrear os meus saberes. Como eles poderiam querer desfazer, matar o significado de tudo que havia aprendido com a voz da minha mais-velha? Como poderiam dizer que mocambo significa habitação miserável, palhoça, coutos de escravos fugidos, e se fosse adjetivo era: sem-valor, pífio? E várias outras definições que colocavam na subalternidade das significações a palavra mocambo, signo de poder evocado na pronuncia da minha avó.

Os dicionaristas haviam pegado as palavras na boca dos meus ancestrais e sofismado seus significados. Há de se perceber sempre as nuances de como eles nos ferra. Sei que o homem e a mulher escravizado(a) que queimou o engelho, matou o escravocrata, o feitor, entrou no profundo da mata, fez  o Quilombo dos Palmares, fez o Quilombo do Cabula, do Urubu, do Buraco do Tatu e tanto outros por esse país sabia, como a minha vó, que o mocambo era o nosso espaço redivivo de uma África já distante, o lar onde erguemos  pela primeira vez nessa terra o nosso assento de repouso, a nossa íntima liberdade.


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Davi Nunes, soteropolitano de nascença, graduado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado Da Bahia- UNEB, é poeta, contista, roteirista, escritor de livro infantil e, na universidade, editor a revista artística-acadêmica Cinzas no Café. Em 2003, saindo do colegial, publicou o livro de poesia Fragmentos da Minha.  No ano de 2006, ganhou o concurso de poesia do CRIA – Centro de Referência Integrado de Adolescente, sobre a curadoria do poeta Zeca de Magalhães. Já em 2007 teve o cordel O Negro Beiru premiado na XI Bienal do Livro de Salvador-Bahia. No Ano 2011 editor a revista artística-acadêmica Cinzas no Café, em 2013  foi letrista  da webserie musical La dance, produzido pelo Cinearts, neste mesmo ano, teve o poema Notívago Dândi ganhador do concurso internacional de literatura Sede poética, organizado pela editora Clube dos autores de Curitiba. Em 2015, teve o conto Cinzas adaptado para o cinema pela cineasta Larissa Fulana de Tal, também dividiu o roteiro  do filme Cinzas com  Larissa. O filme foi lançado no Festival Latinidades 2015, no dia 24 de Julho. Ademais assinou contrato com a editora Uirapuru e publicou o livro infantil- Bucala: a pequena princesa do Quilombo do Cabula. Nesse ano de 2016  foi selecionado no Prêmio Literário Enegrescência para participar da Antologia Literária, a qual publicou oito poemas, além de ter sido selecionado para compor o 6º volume da Coleção Besouro, o livro A Makena e o Faraó, com o conto infanto-juvenil, O Menino das Vinte oito Tranças um Rei Faraó, além de ser colaborador de um site de cultura de EUA, Cores Brilhantes (http://www.coresbrilhantes.com/contributors)  e mantem o blog que versa sobre a cultura afro-brasileira, chamado Duque dos Banzos.

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ITABUNA CENTENÁRIA REFLETINDO - Sem desfalecimentos

Sem desfalecimentos


Serve indistintamente a todos quantos cruzem na estrada de tua vida.

Não aguardes recompensas de ninguém…

Recorda: tudo quanto te serve, tudo quanto te acoberta, é patrimônio de Deus; patrimônio que deves distribuir a mãos cheias para o teu próprio bem, a fim de que todos se beneficiem dos bens divinos.

Estende tuas mãos pelo prazer de servir e jamais te faltará a riqueza do amor em forma de trabalho fraternal.

Desculpa a todos os que não te compreendem, e perdoa a todos os que te ferem. Tudo passa na vida! Aulas e mais aulas nos convocam a aprender para servir a fim de que possamos prosseguir na marcha.

Todos carregamos problemas insondáveis a resolver.

Para uns, é a doença irreversível de um filho; para outro, é a dificuldade do trabalho que o obriga a sofrer a miséria e a tristeza; para outros ainda, é a falta da fé, sem esperança nas horas do dia a dia…

É a Lei que nos impulsiona para os reencontros necessários, a fim de que, uns pelos outros, possamos aprender a nos amar como verdadeiros irmãos do coração.

Doemos, e doemos sempre, entendimento e renúncia, sem esperarmos ser compreendidos, porque, nos trilhos da Eternidade, seremos compelidos a servir doando de nós, os talentos que o Senhor nos empresta para que cresçamos na Sua Glória, e receber-lhe através dos outros, o amparo de que somos necessitados.

Hoje, estamos aqui vos auxiliando a discernir, a fim de que não vos entregueis ao desânimo ou à inércia. Amanhã, sereis vós os que nos substituireis, contribuindo para que nós não percamos a coragem e a fé nos trilhos da carne.

Entendamos a necessidade do intercâmbio, ajudando-nos conforme as necessidades que nos procuram, e, embora as rajadas violentas das provas a que fizemos jus perante a Vida, tudo teremos de bom, de grande e de belo que nos favorecerá a marcha na direção do bem comum.

Coragem e fé! Bom ânimo para o combate que nos é próprio, e o Senhor não nos abandonará.

Dentro das lágrimas encontraremos a maneira de nos reajustar, equilibrando-nos para uma vida sadia com Deus.


Mensagem recebida por Aurora Barba



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PROJETO APOLLO - Geraldo Carneiro

Projeto Apollo


Meu filho mais moço, Vinicius, acaba de chegar à avançada idade de 6 anos. Entre seus presentes de aniversário, ganhou um foguete Apollo de isopor, com propulsão a vento, invenção de um provável camelô da China.

Não sou dado a recordações proustianas, mas esse episódio me devolveu à infância. Ali pelos 9 de idade, no princípio dos anos 60, também ganhei uma réplica de foguete Apollo, trazida de presente dos Estados Unidos pelo único amigo próspero de meu pai — porque nós, os pais e filhos da classe média, raramente íamos muito além de Tribobó.

Como eu não tinha habilidade para montar as centenas de peças de meu foguete, recorri a um amigo mais velho, Ricardo, um ancião de cerca de 17 anos. Ele passou uma tarde inteira montando as peças do meu sonho.

Um parêntese. O Projeto Apollo começou nessa época, com o propósito de conquistar o espaço para os americanos. Eles já haviam levado uma surra dos russos, que tinham posto em órbita o satélite Sputnik, depois a cadela Laika, e por fim o primeiro astronauta, Yuri Gagárin. Em resposta, os americanos lançaram o Projeto Apollo, para chegar à Lua antes dos soviéticos. Fecha o parêntese.

O Ricardo montou com perícia e paciência todas as pecinhas do meu foguete. Fiquei ali, ao seu lado, pensando nos voos que faria no futuro, na Nasa da imaginação.

Fiz muitos planos para o meu foguete. Pensei em levá-lo ao colégio para exibi-lo aos colegas. Eu era apenas um menino latino-americano, sem parentes importantes e vindo do interior, mas imaginei que, graças ao meu foguete, ganharia prestígio com os amigos da beira-mar.

Quem sabe até eu conquistasse a simpatia de certa colega de turma, carioca da gema que, como supremo charme, usava precocemente aparelho nos dentes. Esclareço que tinha especial atração pelas meninas de aparelho, e não sabia que elas, meninas com ou sem aparelho, em geral não tinham interesse pelos foguetes. Enfim, me lembro de ter passado a noite em claro, ao lado do meu troféu, sonhando acordado.

O único problema é que eu era um menino arteiro, muito chegado a travessuras. Numa das manhãs seguintes, aprontei alguma. Não me lembro qual foi meu malfeito, mas devo ter implicado com meus irmãos, ou dito alguma coisa inconveniente, compulsão da qual nunca me livrei. Minha mãe era uma mulher dulcíssima, porém obstinada na educação dos filhos. Fez menção de me sapecar um corretivo.
Como eu tinha know-how de apanhar, me escondi atrás do sofá. Com isso, me tornei inalcançável para minha mãe. Em represália, ela passou a mão no primeiro objeto ao seu alcance —que, desgraçadamente, era o meu foguete —, e o atirou nas minhas costas. E meu sonho se despedaçou em mil caquinhos de plástico.

Foi assim que abandonei o Projeto Apollo.

O Globo, 09/07/201



Geraldo Carneiro - Sexto ocupante da Cadeira 24 da ABL, eleito em 27 de outubro de 2016, na sucessão de Sábato Magaldi e recebido em 31 de março de 2017 pelo Acadêmico Antonio Carlos Secchin.

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