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terça-feira, 9 de maio de 2017

ITABUNA CENTENÁRIA: CURTAS E BOAS – São José

“São” José


Em Itabuna, estava sendo julgado um velho, acusado de haver assassinado o namorado de uma das suas netas.

As provas e testemunhas não lhe eram favoráveis, até quando um advogado, amigo do advogado da defesa, olhando detidamente para o velho notou-lhe semelhança com a imagem de São José, padroeiro da cidade.

E, por coincidência, o danado do velho era carpinteiro e se chamava... José.

Embora não funcionasse no caso e estivesse ali apenas por curiosidade profissional, chamou a atenção do colega para todos esses detalhes.

Então, na tréplica, o advogado invocou o padroeiro da cidade, pateticamente mostrou a estranha coincidência de seu constituinte se chamar José e ser carpinteiro, e deixou o resto por conta do sentimentalismo dos jurados.

O velho foi absolvido por unanimidade e até carregado nos ombros do povo. Um mais exaltado gritou: Viva São José!...

Mas, outro velho ali presente, vizinho do acusado, murmurou:

- Quem não te conhecer que te compre... “seu” José...


(O SORRISO DO CACAU) 

Nelson Gallo

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O ADVOGADO RAIMUNDO LIMA - Waly de Oliveira Lima


O Advogado Raimundo Lima


          O advogado Raymundo Lima era um capeta na tribuna do júri popular. O terror dos promotores. Criativo, improvisador, popular, palavra fácil, imaginação fértil. Às vezes enérgico, mas sempre respeitoso.
 
          Réu carente não sentava no banco sem o seu patrocínio gratuito.'

          Naquele dia, ele, os criminalistas Alberto Galvão, Adélcio Benício e Fernando Henrique, todos Itabunenses, defendiam um criminoso abonado, que matara a mulher por alegado ciúme.

          A sessão do júri estava sendo irradiada por uma das emissoras locais, e o salão do julgamento superlotado. Era no antigo fórum. Na rua, uma multidão de curiosos. Muitos deles de radinho de pilha nas mãos.

          Raymundo era advogado e também vereador. Cumpria a sua função naquele júri com dois objetivos plenamente compreensíveis: libertar o seu constituinte e aumentar as suas bases eleitorais.

          Justíssimas as suas pretensões.

          No júri, eu fui o acusador.

          Havia me precedido na comarca de Itabuna, também como promotor, o meu irmão Wilde, hoje desembargador e, naquele tempo, deputado estadual.

          Os debates foram muito tumultuados por apartes. Alguns longos e, não raro inoportunos. Não só por parte dos quatro advogados da defesa como vindos do promotor, no caso eu, como já me referi.

          O juiz Francisco Fontes usou de sua energia para manter a ordem, que, de fato, não chegou a ser quebrada, apesar do calor dos diálogos.

         Dos sete jurados, um tinha curso universitário. Os demais, pessoas simples do povo. Afinal, o júri é um tribunal popular. Todos os cidadãos devem ter vez. Está certo, assim.
         Eu havia tentado estudar todos os ângulos possíveis da causa. Levara para o fórum uma pilha de livros, para me permitir provar qualquer afirmação doutrinária ou de jurisprudência que viesse a fazer. Os defensores também estavam bem servidos de livros.

        Lá para as tantas, já na réplica, à noite – para evidenciar o caráter antissocial do acusado e os equívocos do falso ciúme que se proclamava, tomo de um livro, leio certo trecho e declaro:

       - Esta é mais uma lição de FREUD! (pronuncia-se “Fróid”).

       De imediato, num gesto de estudada elegância, o advogado Raymundo Lima pede um aparte, acrescentando, com astúcia: “se não vou atrapalhar o raciocínio de Vossa Excelência...”

        Respondi-lhe prontamente:

        - Pois não, nobre advogado. Sou toda atenção às suas palavras.

        E ele, mordaz, fingindo ignorância, certo de que feria encobertos objetivos, prosseguiu:

        - O irmão de vossa excelência foi promotor nesta comarca por muito tempo. Tribuno de qualidades invejáveis, como o nobre acusador de agora. Mas jamais precisou pronunciar palavrão neste plenário para cumprir a sua dura tarefa de acusar...

         - Eu me refiro ao pai da psicanálise, o grande Sigismundo Freud, a quem vossa excelência conhece muito bem – frisei.

         - Quanto mais imundo pior – fazendo-se de desentendido ele – E ainda por cima pai de mais filhos, que não conhece nem ampara. O irmão do nobre representante do Ministério Publico, torno a repetir, não diria palavrões aqui.

          Houve, entre os jurados e assistência, indisfarçáveis olhares de censura contra o meu “desrespeito” vocabular à pureza e à santidade do júri.

          Acredito que a maioria dos presentes e dos ouvintes acabou se convencendo de que eu citara mesmo o grande FREUD, a quem o mundo tanto deve. Tive que argumentar muito, mostrar o livro do genial judeu, desviando-me assim, por muitos instantes, dos autos. Apelei até para o conhecimento dos colegas do advogado Raymundo Lima, seus companheiros de defesa, que ficaram calados, pois não era hora de estarem falando.

          Mas deve ter ficado alguma dúvida contra a minha pureza vocabular. Porque um dia ouvi de certa senhora, que escutara os debates pelo rádio, o comentário de que o meu irmão, esse sim, falava no júri para qualquer família poder escutar.

          Ah, Raymundo Lima, meu querido e saudoso amigo, como eu te entendi naquele júri e te quis bem.


(CRÔNICA AVULSA)
Waly de Oliveira Lima
Da Antologia ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES
Seleção, Prefácio e Notas de Cyro de Mattos

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WALY DE OLIVEIRA LIMA - é Patrono da Cadeira 39 da Academia Grapiúna de Letras – AGRAL, ocupada pela poetisa Eglê Santos Machado. É também patrono da Cadeira 06 da Academia de Letras Jurídicas do Sul da Bahia – ALJUSBA, ocupada pelo Advogado Deusdete Machado de Sena Filho. Nasceu em Vitória da Conquista, a 29 de dezembro de 1919. Fez o curso primário em Jequié, Uruçuca e Salvador, onde, no Colégio Maristas, aprovado no admissão, iria ingressar no ginásio e alcançar o “complementar de direito”. Formado em advocacia pela Faculdade de Direito da Bahia, em 1944. Promotor de justiça durante muitos anos em Itabuna, onde lecionou nos colégios Divina Providência e Ação Fraternal. Crônicas suas aparecem na imprensa sul - baiana, jornal “Dimensão“ de Itapetinga, e “A Tarde”.

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EDUARDO PORTELLA: PENSADOR DA CULTURA - Cyro de Mattos

Eduardo Portella: Pensador da Cultura
Cyro de Mattos

  
          Eduardo Portella  era um desses intelectuais atuantes que argumentava com lucidez sobre assuntos de nossas letras e cultura. Graduado pela Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco. Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro,  lecionou até os últimos dias de vida. Ministro da Educação no  governo do Presidente João Figueiredo, lutou pela anistia, foi demitido por ter  dado apoio à greve dos professores  universitários.

          Seu discurso de vida dirigiu-se para os parâmetros de um humanismo solidário com base na ordem da verdade. Foi interditado por aqueles que pensam ser suficiente para valer na dotação humana   o poder que você exerce com o cargo. Dele é a célebre frase: “Não sou ministro, estou ministro”, para afirmar com isso, no tácito entendimento da palavra enunciada, que tudo é transitório ante o eterno que fica.

          Crítico, pesquisador, conferencista, editor, advogado e político brasileiro. Ocupou a presidência da Conferência Mundial da UNESCO. Foi   diretor das  Edições Tempo Brasileiro, divulgando Heidegger no Brasil e o Formalismo Russo de Yuri Tynianov. Membro titular da Academia Brasileira de Letras, recebido por Afrânio Coutinho.  Naquela instituição recebeu João Ubaldo Ribeiro, Lígia Fagundes Telles e  Zélia Gattai.

          Propôs um método crítico de base hermenêutica, teórica e filosófica. Sem inclinações para a interpretação da obra literária com base na inserção de autor e obra nos  períodos históricos, nem decorrente de gratuitas impressões sobre a massa do que foi escrito,   mas em função do estilo em que o autor se funda e marca sua obra  na expressividade da escrita, tanto na forma  como no conteúdo.  Esteve  à frente dos níveis usuais,  sendo o responsável pela introdução da análise estilística nas letras brasileiras. Filtrou os pressupostos, métodos  e ferramentas dos espanhóis Carlos Bousoño  e Dámaso Alonso, propondo  o julgamento como ato final na análise  literária   após a captura do fundamento  que transita  entre linguagem e uso da língua, responsável pela literariedade. Este fundamento é a visualização do entretexto.  Sua tese de doutorado foi  publicada sob o título Fundamento da Investigação Literária (1973), refundida em 1974.
 
        Deixou um legado constituído de 23 obras e, entre elas, Dimensões I (1958), Dimensões II (1959), África colonos e cúmplices (1961), Literatura e realidade nacional (1963), Dimensões III (1965),  Teoria da comunicação literária (1970), Vanguarda e cultura de massa (1978) e A Sabedoria da Fábula (2011). Recebeu prêmios literários  e títulos honoríficos de muito prestígio, como Gran Cruz de la Orden del Mérito Civil, Madri (2001), Doutor Honoris-Causa, Universidade Federal da Bahia (1983), Gran-Cruz de la Orden Civil de Alfonso X, el Sabio, Madri (1980), Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, Brasília (1979).
                
          Aprendi muito com ele.  Acompanhou  minha carreira literária desde o nascimento, há cinquenta anos. Prestigiava-me. Prefaciou meu livro Cancioneiro do Cacau, que me deu  quando inédito o Prêmio Nacional  de Poesia Ribeiro Couto da União  Brasileira de Escritores (Rio) e, quando   publicado,  o Segundo Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália,  o Terceiro Prêmio Nacional de Poesia Emílio Moura da Academia Mineira de Letras e foi finalista do Jabuti.

          É dele essa observação sobre o livro:

                “ Mas o seu poema  não irrompe de qualquer abalo sísmico, ou de qualquer intempérie facilmente previsível. Ele eclode da história revigorada, nasce do fundo do homem  e das coisas, da sua raiz em curso, da origem protegida  do menor sedentarismo... Cyro de Mattos se compraz em revalorizar a raiz, e reverenciar a origem, em reconhecer  o fundamento   radicalmente imune  ao fundamentalismo. O poeta enraizado e, no caso, porque enraizado, generoso, recorda para a frente.  Como quem retira dos filtros do passado,  e dos detectores de metais do presente, lições,  mesmo que enviesadas, para a construção do amanhã.”
 
         Que melhor prêmio poderia receber autor e obra do que essa opinião do enorme ensaísta? Humanista, leal, elegante, sóbrio, companheiro, intelectual de primeira grandeza. A última vez que estive com ele, na Academia Brasileira de Letras, quando fui proferir  palestra sobre os mares trágicos de Adonias Filho, disse-me que estava escrevendo um livro sobre Adonias Filho e outro sobre Jorge Amado.
              
         Baiano de Salvador,  nascido em 8 de outubro de 1932, Eduardo Portella passou desse plano terrestre para outra dimensão no  dia 2 de maio deste ano.’




Cyro de Mattos,  escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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