30 de maio de 2018
Por Thiago Kistenmacher, publicado pelo Instituto Liberal
Para além das discussões econômicas e políticas que envolvem
a greve dos caminhoneiros, quero chamar atenção para um fato velado: o gosto
que grande parte da população que defende a greve nutre pelo caos. Sim, é isso
mesmo.
Santo Agostinho, em suas Confissões, distinguindo
prazer e curiosidade, diz que, ao passo que o primeiro busca o que é belo,
melodioso e suave, a segunda faz com que a população corra para o cadáver
dilacerado, ainda que isso lhe cause horrores.
A partir de tal reflexão e considerando o contexto atual,
proponho esse debate que gira em torno dos mais pérfidos anseios humanos e suas
contradições.
Que a humanidade tenha gosto pelo caos é um fato inegável.
No entanto, penso que podemos separá-lo em três degraus: 1) o gosto pela
iminência do caos; 2) o gosto pelo caos em si; 3) o recuo quando ele bate
na porta.
O primeiro degrau, o gosto pela iminência do caos, diz
respeito exatamente ao que estamos vivendo. Diante da possível desordem, há o
deleite de grande parcela da população favorável à greve e à sua radicalização.
Há muita gente que, não admitindo seu lado sombrio, torce para que os
caminhoneiros continuem paralisados. Não porque estejam verdadeiramente
preocupados com as condições de trabalho daqueles homens, mas porque querem
experimentar o caos.
É preciso ser muito ingênuo ou hipócrita para dizer que essa
sensação não causa prazer nas multidões. Ou você acha que o radicalismo daquele
seu amigo que nunca se preocupou com política se dá única e exclusivamente
porque ele se compadece pelos caminhoneiros? Ou que aquela desocupada que passa
a tarde toda vendo o programa da Sonia Abrão não gosta de falar sobre isso com
a outra vizinha desocupada? Ambos sabem, em seu íntimo, o que desejam. Contudo,
jamais o admitirão.
“Somos todos caminhoneirxs!” branda o fanático que, na
verdade, aspira à rebelião generalizada. “Essa luta é nossa!”, exclamam alguns
que, no fundo, querem ver uma colisão.
Todos os sujeitos minimamente sinceros sabem o quanto uma
enchente ou uma cidade ilhada por causa de uma catástrofe natural causam furor.
Moro em Santa Catarina e sei muito bem o quanto as pessoas daqui gostam – sim,
exatamente isso! – de ver os rios tomarem as ruas e as casas – que não as
delas, de preferência. Vi algumas pessoas fazendo selfies com
sorrisos diante de um rio que transbordava. Grotesco! Não é por acaso que as
ideias, livros e séries apocalípticas abundam.
A possibilidade do pandemônio excita os ânimos, gera artigos
“científicos”, tira as pessoas da rotina livrando-as do trabalho, cancelando
suas aulas e dando-lhes assunto – e não é exatamente o que a greve dos
caminhoneiros tem feito? Quanto menos abastecidos estiverem os postos de
gasolina e os mercados, mais abastecidos estarão os ânimos selvagens.
O segundo degrau, a apreciação do caos em si¸ diz
mais respeito à atração pela barbárie quando ela está distante. Ninguém quer,
com exceção dos psicopatas revolucionários, estar imerso numa guerra civil, por
exemplo. Por esse motivo tal fetiche precisa ser realizado de longe, seja pela
televisão ou pela internet, com suas palavras de ordem em caixa alta.
Neste estágio a greve dos caminhoneiros torna-se um
espetáculo, um show cujo final o “engajado” acredita que pode alterar ao sabor
do seu ímpeto rebelde. Ele também faz campanha de agitação on-line. Mas
permanece ali, assistindo do seu apartamento abastecido uma série de TV da qual
acredita participar.
Dessa forma o sujeito pode, ainda que inconscientemente, ver
como ocupa um lugar privilegiado em comparação aos países miseráveis ou em
guerra. Compadece-se da miséria apenas no “gogó”; lamenta a guerra na Síria,
mas se apraz assistindo vídeos dos bombardeiros no Youtube. Ao mesmo
tempo em que encantado pela anarquia, de certa forma, ele a teme, pois ela
balançaria seu conforto que só a serenidade traz.
Assim, neste instante o sujeito extremista deve tomar uma
posição mais concreta: ou ele permanecer admirando o caos à distância, de forma
segura; ou, mais apaixonado do que nunca pela violência política, avança para o
próximo degrau e alimenta ainda mais a desordem. O produto dessa última
aspiração, não obstante, são os efeitos com os quais se deparam aqueles que
optam pelo agravamento do radicalismo.
O terceiro degrau, o recuo quando ele se bate na porta,
é paradoxal – e por enquanto hipotético. Isso porque agora o sujeito que
defendia a revolução vê a desordem bater na sua porta. É nesse momento que ele
estaca, pois seu instinto de preservação, de pai, de mãe, falam mais alto.
Se antes ele desejava que a população “quebrasse tudo”,
agora ele a teme. Antes ele quis inquietar o povo através de mensagens no Whatsapp dizendo
que os mercados não seriam abastecidos e que haveria um caos. Naqueles tempos
ele estava no primeiro degrau, e provava o gosto ainda doce de uma tragédia.
Mas agora os caminhões não mais circulam há meses e diversas outras categorias,
encorajadas por inconsequentes como ele, aderiram ao protesto. Há, portanto, a
fome. Agora ele se encontra de fato numa situação que antes era apenas
teoria e, como era de ser esperado, o apóstolo facebookiano da
insurreição encontra-se desesperado.
O caos já não é mais televisionado, mas assistido da
varanda; a desordem que ele tanto propagava pelas redes sociais chegou ao seu
bairro; as armas que ele queria voltadas contra o palácio do governo começam a
tomar as ruas e o exército que ele desprezava perdeu o controle da situação.
Eis a barbárie que parecia menos cruel nos livros e na televisão.
Como consequência, o imoderado que antes assistia o caos do
sofá e que, não satisfeito, incitou à radicalização, se vê no terceiro último
degrau. Agora, lá de cima, ele contempla os efeitos do que favoreceu, observa
as sequelas deixadas pelas teorias, por seu discurso inflexível e precisa
escolher: ou permanece lá, entrando na guerra e assinando uma declaração de
inimigo da paz e da segurança pública ou ele baixa a cabeça humildemente e
confessa que sua posição radicalizada redundou numa barbárie que nem ele
próprio consegue sustentar.
Quis chamar a atenção para o fato de que muita gente,
inclusive os “especialistas” em economia com os quais poderíamos encher um
caminhão, emitem opiniões extremas sem o mínimo embasamento.
Além do que, sem
calcular os resultados, o discurso do extremista, quando lançado aos quatro
ventos, pode criar uma tempestade pela qual ele próprio poderá ser vitimado.
Sabemos que quando alguém está convicto de atuar do lado do “bem”, todo mal
pode ser justificado. Então, prudência antes de sair por aí estimulando
apetites radicais interiores e mal resolvidos disfarçados de cumplicidade.
Claro que aqui também lidamos com situações hipotéticas,
pois felizmente não chegamos ainda ao último estágio. Entretanto, além do gosto
pelo caos – que é um fato concreto – há o medo dele, como pudemos notar. Eis o
paradoxo. Muitas vezes quem propaga a barbárie no calor do momento assim o faz
por não medir suas implicações. A propósito, é sempre importante lembrar que
Marat e Robespierre, sanguinários como poucos, acabaram também guilhotinados. O
extremismo nunca foi um carro a ser seguido, salvo se formos tiranos e
suicidas.
Por fim, ainda que a greve dos caminhoneiros tenha sua razão
de ser, ou seja, o preço elevado dos combustíveis, não é em função disso que
devemos entregar a boleia do nosso caminhão de sentimentos para um
irresponsável motorista jacobino. Afinal de contas, sabemos que este não
aprendeu nada com as viagens da História e que, por isso, continua trafegando
perigosamente na contramão.
BLOG / RODRIGO
CONSTANTINO
Um blog de um liberal sem medo de polêmica ou da patrulha da
esquerda “politicamente correta”.
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