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sexta-feira, 26 de maio de 2017

O PARASITA II - Machado de Assis

O Parasita II


O parasita literário tem os mesmos traços psicológicos do outro parasita, mas não deixa de ter uma afinidade latente com o fanqueiro literário. A única diferença está nos fins, de que se afastam léguas; aquele é porventura mais casto e não
tem mira no resultado pecuniário, — que, parece, inspirou o fanqueiro. Justiça seja feita.

A imprensa é a mesa do parasita literário; senta-se a ela com toda a sem-cerimônia; come e distribui pratos com o sangue frio mais alemão deste mundo — diante da paciência pública — que vacila sobre os seus eixos. Um amigo meu define perfeitamente este curioso animal; chama-o Vieirinha da literatura. Vieirinha, lembro ao leitor, é aquele personagem que todos têm visto em um drama nosso.

De feito, este parasita é um Vieirinha sem tirar nem pôr; cortesão das letras, cerca-as de cuidados, sem alcançar o menor favor das musas.

Segue-as por toda a parte, mas sem poder tocá-las. Só não sobe ao monte sagrado, porque é uma excursão difícil, e só dada a pés mais de ferro, e a vontades mais sérias. Ali, ficam eles nas fraldas, soltando uma orquestra de gemidos, até que o velho cavalo os vem despedir com uma amabilidade de pata sofrivelmente acerba.

Um coice é sempre uma resposta às suas súplicas... Represália no caso.

Eterna lei das compensações!

Entre nós o parasita literário é uma individualidade que se encontra a cada canto. É fácil verificá-lo. Pegais em um jornal; o que vedes de mais saliente? uma fila de parasitas que deitam sobre aquela mesa intelectual um chuveiro de prosa ou verso, sem dizer — água vai! Verificai-o!

O jornal aqui não é propriedade, nem da redação nem do público, mas do parasita. Tem também o livro, mas o jornal é mais fácil de contê-los.

Às vezes o parasita associa-se e cria um jornal próprio.

Aqui é que não há de escapar-lhe. Um jornal todo entregue ao parasita, isto é, um campo vasto todo entregue ao disparate! É o rei Sancho na sua ilha!

Ele pode parodiar o dito histórico l’état c'est moi! porque as quatro ou seis páginas, na verdade, são dele, todas dele. Ele pode gritar ali, ninguém lho impedirá, ninguém; uma vez que não ofenda a moral pública. A polícia pára onde começa o intelectual e o senso comum; não são crimes no código as ofensas a esses dois elementos da sociedade constituída.

Ora, sustentado assim pelos poderes, o parasita literário invade, como o Huno moderno, a Roma da intelectualidade, com a decência moral nos lábios, mas sema decência intelectual.

Tem pois o jornal, próprio ou não próprio, onde pode sacudir-se a gosto, garantido pelas leis. Se desdenha o jornal tem ainda o livro.

O livro!

Tem ainda o livro, sim. Meia dúzia de folhas de papel  dobradas, encadernadas, e numeradas é um livro; todos têm direito a esta operação simples, e o parasita por conseguinte.

Abrir esse livro e compulsá-lo, é que é heroico e digno de pasmo. O que há por aí, santo Deus! Se é um volume de versos, temos nada menos que uma coleção de pensamentos e de notas arranhadas laboriosamente em harpas selvagens como um tamoio. Se é prosa — temos um amontoado de frases descabeladas entre si, segundo a opinião do autor. É muitas vezes um drama, um romance misterioso, de que o leitor não entende pitada. Se eu quisesse ferir individualidades, tocar em suscetibilidades, desenrolaria aqui um sudário dessas invasões na literatura; mas o meu fim é o individuo, e não um indivíduo.

O parasita literário vai ainda aos teatros. Esta invenção de recitar nos teatros, tirada da antiguidade grega, que levanta um bardo em um festim, como nos mostra a Odisseia, abriu um precedente, e deu azo ao abuso. A autoridade, que é ainda a polícia, não indaga do mérito da obra, e quer apenas saber se há alguma coisa que fira a moral. Se não, pode invadir a paciência pública.

Todos os leitores estão de posse deste traço do parasita  literário. As salas dos nossos teatros têm repercutido imensas vezes com esses arranhamentos de lira. Basta bater palmas de um camarote e ter alguns exemplares para distribuição; a platéia deve receber aquele aguaceiro intelectual.

O parasita está debaixo do código.

Ora, o que admira no meio de tudo isto, é que sendo o parasita literário o vampiro da paciência humana, e o primeiro inimigo nacional, acha leitores, — que digo? adeptos, simpatias, aplausos!

Há quem lhes faça crer que alguma coisa lhes rumina na  cabeça como a André Chénier; eles, a quem já não faltava vontade de crer, aceitam, como princípio evidente, essa solução do impossível, que a parvoíce lhe dá de boa vontade.

Que gente!

Os tragos fisiológicos do parasita são especiais e característicos. Não podendo imitar os grandes homens pelo talento, copiam na postura e nas maneiras o que acham pelas gravuras e fotografias. Assumem um certo ar pedantesco, tomam um timbre dogmático nas palavras; e, ao contrário do fanqueiro, que tem a espinha dorsal mole e flexível, — ele não se curva nem se torce; a vaidade é o seu espartilho.

Mas, por compensação, há a modéstia nas palavras ou certo abatimento, que faz lembrar esse ninguém elogiado da comedia. Mas ainda assim vem a afetação; o parasita é o primeiro que esta cônscio de que é alguma coisa, apesar
da sinceridade com que procura pôr-se abaixo de zero.

Pobre gente!

Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...

É que têm o evangelho diante dos olhos...

Bem-aventurados os pobres de espírito.

O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade. Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por toda a parte.

Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança. Regala-se à custa de crenças e superstições, de dogmas ou preconceitos, e lá vai passando uma vida de rosas.

A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto. O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado em papa vendeu as absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas. Mediante o ouro, aplanou as dificuldades do matrimônio quando existiam; depois levantou a abstinência alimentar, quando o crente lhe dava em troca uma bolsa.

É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa ideia em embrenhar-se pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica para a estupidez, que toma o altar como um canal de absorver ouro e regalias.

Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé, rasga as crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das famílias, sem haver sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias. Dominou imoralmente as massas, os espíritos fracos, as consciências virgens.

Esta transformação do parasita não tende por ora a desaparecer; a fogueira de J. Huss não queimou só o grande apóstolo, devorou também o vestíbulo desse edifício de miséria levantado por uma turba de parasitas, parasita da fé, da moralidade e do futuro.

Em política, galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião ao grado das circunstâncias, deixando- a ao paladar das situações, como uma verdadeira maromba de arlequim. Entra no parlamento com a fronte levantada,
votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo.

Exíguo de luz intelectual, — toma lá o seu assento e trata de palpar para apoiar as maiorias. Não pensa mal: quem a boa árvore se encosta...

Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o peso do domínio desses boêmios de ontem.

Deixá-los subir às mesas supremas do festim público. Mas tenham cuidado na solidez das cadeiras em que se sentarem.

Na diplomacia, é mais fácil o ingresso ao parasita. Encarta-se aí em qualquer legação ou embaixada, e vai saltitar em Paris ou em Viena. Lá representam tristemente a pátria que os viu nascer, na massa coletiva da embaixada ou da legação. O que faz de melhor, esse parvenu sem gosto, é brilhar na arte das roupas, como corifeu da moda que é. Já é muito.

Podia, se não temesse fatigar, fazer uma enumeração mais longa das famílias de parasitas que irradiam destas espécies cardeais. Seria, entretanto, uma longa história que demandaria mais largo espaço; e não caberia nestas ligeiras
aquarelas.

O parasita é tão antigo, creio eu, como o mundo, ou pelo menos quase.

Em economia política é um elemento para estacionar o enriquecimento social; consumidor que não produz, e que faz exatamente a mesma figura que um zangão na república das abelhas.

Extinguir o parasita não é uma operação de dias, mas um trabalho de séculos.

Os meios não os darei aqui. Reproduzo, não moralizo.

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Aquarelas

Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.


Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro

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Machado de Assis - (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras.

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ANTONIO Candido (1918-2017) – Por Celso Lafer

Antonio Candido (1918-2017



Antonio Candido foi uma das maiores referências intelectuais do Brasil. São de indiscutível envergadura suas contribuições para o entendimento do País, de sua literatura e do fenômeno literário. Foi um notável professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Suas aulas eram uma obra de arte. Generosa foi sua dedicação aos seus muitos alunos, como posso dar testemunho. Transformou-se no correr do tempo de sua vida numa grande presença na vida brasileira pela limpidez de sua conduta ética e pelo empenho em ser justo (uma faceta do seu ser socialista) no trato das pessoas e das situações.

Afonso Arinos, no depoimento que deu para Esboço de Figura, livro que organizei para celebrar os 60 anos de Antonio Candido, qualificou-o como um grande mestre que amadureceu no exercício de sua mestria por “uma serenidade sem frieza, uma tolerância sem concessão, uma firmeza sem rusticidade”.

O estilo da sua prosa, no seu jogo entre ordem e movimento, é uma expressão da acuidade e qualidade de sua visão. Da mesma maneira, num outro registro, o coloquial de sua encantadora conversa sempre bem temperada de “estórias” e reminiscências.

Esboço de Figura abriga notável estudo de Fernando Henrique Cardoso, A fome e a crença (sobre os parceiros do Rio Bonito), que dá a medida da contribuição de Antonio Candido para a ciência social brasileira, a cujo ensino se dedicou nas etapas iniciais de sua carreira na USP. Abriga um igualmente notável estudo de José Guilherme Merquior, O texto como resultado, altamente esclarecedor da teoria e da prática crítica de Antonio Candido.

Formação da Literatura Brasileira (1959) é, como aponta Roberto Schwarz, um livro de sete fôlegos.
Resulta da maneira como Antonio Candido, ao examinar a interação da obra com autor e público, explica, com o domínio da literatura comparada e do contraponto Iluminismo/Romantismo, a construção do sistema literário brasileiro e o seu papel na elaboração da consciência nacional no século 19. É uma obra que reúne os três atributos de um clássico, identificados por Norberto Bobbio: 1) é uma interpretação autêntica das preocupações com a formação do Brasil dos anos 50, o tempo histórico de sua redação conclusiva; 2) mantém uma atualidade que instiga sua constante releitura; 3) contém conceitos, categorias e interpretações de que nos continuamos a valer – decorridos quase 50 anos de sua publicação – para apreender o Brasil e a especificidade de sua literatura, de suas obras e seus autores nos momentos decisivos que identificou e estudou.

Iniciação à Literatura Brasileira (1997) é uma primorosa e atualizada síntese das ideias de Formação, que alcança o decênio de 1950 com uma análise do sistema literário consolidado.

Antonio Candido estudou com flexibilidade metodológica, em Literatura e Sociedade (1965), como o contexto socioeconômico externo se transforma no criativo contexto interno do texto literário.
Analisa a multiplicidade dos estímulos à criação literária para apontar como levam à especificidade de cada obra. É a sua “paixão pelo concreto” que dele faz um crítico de vertentes, sempre atento à natureza de cada obra. Textos translúcidos, que parecem reproduzir a realidade como os romances de Zola e de Aloísio de Azevedo, exigem uma aproximação distinta da de textos opacos como os de Kafka e de Buzzati. É o que desvenda no seu paradigmático O Discurso e a Cidade (1993).

O discernimento de matizes de Antonio Candido é fruto do seu senso da complexidade das coisas. Está presente, por exemplo, em Tese e Antítese (1963), em que examina o estilhaçamento do ser e a dimensão fecunda da relação ordem/desordem – um dos seus temas recorrentes – no plano individual do Homo fictus através da análise das obras de Alexandre Dumas pai, Joseph Conrad, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.

O Direito à Literatura, palestra dada em 1988 na Faculdade de Direito da USP, em curso organizado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, hoje recolhida na quarta edição, por ele revista e reorganizada, de Vários Escritos (2004), tem como característica uma reflexão muito própria sobre o nexo entre o Direito e a literatura. Assinala uma confluência entre a sua obra e a sua passagem pelo Direito, como destaquei em meu Antonio Candido e a Faculdade de Direito, inserido no volume dedicado a celebrar os seus 90 anos.

No seu estudo, Antonio Candido, na análise do papel da afirmação histórica dos direitos humanos, fundamenta o direito à fruição generalizada da criação ficcional e artística como um bem incompressível por ser uma necessidade básica. Realça que, “assim como não é possível haver equilíbrio próprio sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem literatura”. A literatura como “o sonho acordado das civilizações” é um fator indispensável de humanização e “confirma o homem na sua humanidade” ao trazer, “como uma atividade sem sossego”, livremente, “o que chamamos o bem e o que chamamos o mal”.

Relembrei algumas facetas do percurso de um grande intelectual que foi um grande homem sem ter tido espaço para realçar a argúcia iluminadora da sua leitura de poesia – a de quem pioneiramente, em 1943, identificou a importância de João Cabral.

“A morte, sempre esperada, é sempre inesperada”, dizia Octavio Paz. Os italianos têm uma aguda fórmula para expressar o luto do falecimento: “È mancato all’affetto dei suoi cari”. É o que tantos estão sentindo. É o que sinto, profundamente, com afeição e admiração, como seu antigo e sempre aluno, amigo e compadre, pois Antonio Candido foi, como disse Guimarães Rosa – na dedicatória de Primeiras Estórias, a ele enviado –, “melhor do que as palavras possíveis da gente”.

Folha de São Paulo, 21/05/2017


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Celso Lafer - Quinto ocupante da cadeira 14 da ABL, eleito em 21 de julho de 2006, na sucessão de Miguel Reale, e recebido em 1º de dezembro de 2006 pelo acadêmico Alberto Venancio Filho.

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