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domingo, 4 de junho de 2017

ANOS DE TERNURA – Oscar Benício dos Santos

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Anos de Ternura 
  
Reviver meus anos de ternura
é refazer no presente o que já fiz
num passado remoto, sempre feliz.
– Sonhar ditosa vida futura! 

É repetir aquela travessura 
que me deixou na testa a cicatriz.
É ser ríspido, sempre com brandura,
e mestre, sem nunca ter sido aprendiz.

Retorno atrás de luminoso ocaso,
aonde reverberava um sol-criança,
já promissor de perene verão.
 
E agora, neste presente, extravaso
ainda muito amor, com esperança
em ver os dias de ternura de então.

  
Oscar Benício Dos Santos,
Faz. Guanabara


* * *

TERRA MÃE - Helena Borborema

Terra Mãe


          Numa clara e fria manhã de junho, a menina foi levada à proximidade da janela aberta, para ver pela primeira vez a luz amena dos raios solares, que lhe chegaram como um afago. Tinha poucos dias de nascida. A claridade lhe tocou os olhinhos então fechados, que se abriram vagarosamente em leves piscadelas, e pela primeira vez na vida viu a brilhante luz do mundo que se abria para ela. Esse encontro foi como um beijo de luz, o primeiro contato daquela meninazinha com o sol de sua cidade.

          Mais tarde, já crescida, a menina olhou pela primeira vez com atenção para o céu azul-escuro recamado de pontos brilhantes que se estendiam sobre a sua cabeça e, diante da maravilha que foi aquela visão, de dedo apontado, tentou contar quantas estrelas tinha o céu de sua terra, buscando encontrar entre estas a mais bonita. Ao mesmo tempo, foi o contato mais consciente com o rio, com o frescor de suas manhãs após uma noite de chuva, as suas enchentes,  a visão de suas margens escuras e silenciosas à noite, cheias de mistérios para a sua alma infantil, alegres e verdejantes durante o dia.

          Deve ter nascido daí, desses encontros, a amizade, a afinidade da menina com a sua terra. O seu despertar para a vida foi através desse ar que respirou, desse sol que a aqueceu, das estrelas que pela primeira vez viu brilhar. Foi o seu despertar para as belezas do mundo e esse mundo foi a sua cidade. No seu chão, deu os primeiros passos, pisando incerta a terra que já era sua. Sobre esse chão brincou quando pequena, aprendeu a caminhar, a viver. Sobre ele derramou lágrimas de criança e, mais tarde, já adulta, as mais ardentes lágrimas de dor. Como um relicário, o chão de sua terra guarda sob ele despojos que lhe são extremamente amados, e por isso ele também lhe é sagrado.

          Lembranças de uma vida inteira tiveram como cenário as ruas, as casas, os jardins, as plantas, as gentes de sua terra e o seu rio que, embora maltratado, sonolento, triste, lhe fala de histórias e lembra coisas bonitas do passado.

          Outras terras foram vistas, outras paisagens descortinadas, outros rios, cidades com características marcantes de civilização e arte. Nada, porém lhe toca mais o coração do que a cidade onde nasceu, a TERRA-MÃE onde cada pedaço de chão lhe conta uma história e projeta imagens do passado que vão surgindo como lembranças no presente.


(“Retalhos”)
HELENA BORBOREMA
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NOTA DA AUTORA
Retalhos.  Que é retalho? Nada mais do que sobras, pequenos pedaços que restaram de um todo. É um pedaço de pano que sobrou de outro maior. Assim, esse título “Retalhos” condiz com os pequenos fatos, pequenas lembranças, pedaços que restaram de uma peça maior que é a minha vida. Foram sendo ajuntados aqui e acolá, na medida em que foram aparecendo e colocados nestas páginas. Juntados os pedaços e olhados como um todo  dão-me a visão de um tempo passado da minha cidade, então mais humana, mais irmanada, quando todos se conheciam e se abraçavam no abraço de velhas amizades, quando a vida parecia mais simples e descompromissada. Retalhos da vida, coisas simples que sobraram no meio dos grandes momentos do existir. Cada um deles eu hoje revejo com a alegria de quando menina, aquela alegria que meus olhos e coração guardaram.
                                                                                                                         Helena Borborema    

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CAROL - Ariston Caldas

Carol


          Não sabia por que se visgava tanto a Carol. Um absurdo.

          Bonita ela não era e de perfil chegava próximo a ser feia – nariz levemente curvo, olhos muito espaçados um do outro, de lábios finos, boca que nem imitava um coração. Somente os cabelos eram razoáveis – lisos, cheios, de colorido entre marrom e preto. De corpo, algum atrativo, o que não quer dizer se parecesse com um modelo, muito menos com uma miss; os seios eram duros e mais próximos da barriga do que da base do pescoço um tanto envelhecido, mostrando rugas discretas. 32 anos.

          Seria impressão pelo nome, uma obstinação? Carol. Não era apelido, nome verdadeiro. Lembrava que na infância conhecera uma menininha ao lado chamada assim. Apelido. O nome de batismo dela era Carolina. Mas, por isso ou aquilo, sentia-se visgado por Carol.

          Quando se deitava com ela, era um sufoco, uma alucinação. Esquecia-se do mundo; predestinação, lembrava.

          A mãe dele dizia que tudo na vida é traçado pelo destino. “Ninguém foge do destino”, ela falava. Tantas mulheres bonitas por aí, novinhas, só ele garrado com uma sem expressão. “Será pelo cheiro do corpo”? Exalava de baixo para cima, lembrando cheiro de marisco. Ele o sentia estranho, mas gostava.

          Havia também o estridente da voz, a maneira de fechar os olhos. Um conjunto de coisas que o deixava confuso, com o juízo exacerbado. Magrinha, sem polimento na expressão do falar; sem elegância no porte, “sem coisa nenhuma que justifique essa obsessão”. Tentava ou pensava nisto, arrumar outra que o recomendasse no meio onde vivia – conhecido, de bom conceito, contabilista acreditado, capaz de conseguir namoradas bonitas, de família importante, às vezes, pensando em tudo isso, sentia pena de Carol, humilde, magrinha, com cheiro de marisco vindo de baixo. Mas não podia. Quem lhe mandou meter-se!

          De certo modo, seria fácil libertar-se. A qualquer dia desses. E ficava pensando nessa possibilidade, mentalizando arrumar-se adiante.

          Lembrava de uma balconista de olhos verdes que ia toda tarde tomar sorvete numa lanchonete ao lado do escritório onde trabalhava. Devia ser perfumada, tinha a boca bem delineada, os seios altos o os olhos com uma distância estética entre um e outro. Já ouvira ela falar, voz meiga, sem as manhas da fala de Carol. Vinham outras em suas ideias, lembrava que desde menino atraía as mulheres e não seria agora, com os primeiros fios brancos aparecendo, que ia se dobrar ao destino, como acreditava a mãe dele. Teria que buscar a razão, meio que o recomendasse entre amigos, parentes e conhecidos. Pensava assim sentindo pena de Carol, desconfiada, rústica a momentos: “quando eu sumir, você vai ver!” Ele ouvia, pensando sem acreditar, senhor de si mesmo. Teria quantas quisesse, bonitas, cheirosas.

          Carol lhe beliscava, atravessava os olhos. “Sabe que você é feio?” depois ficava embutida, trancada. Ele se afastava e Carol ficava resmungando, falando baixinho, xingando. O cheiro subia ativo, inalante. Tinha pena de Carol começando a envelhecer. “Pensa que vai encontrar outro igual a mim!” Sentia-se dono da situação, dono de Carol, absoluto.

          Vez em quando ela sumia. “Por quê?” Ficava doido pela rua, pelas esquinas,  os olhos vasculhando. Nem de longe ninguém parecido, nem no porte nem no andar. “É bom que ela não me apareça mais!” Sentia falta dela, dos olhos afastados um do outro, da fala sutil,  às vezes estridente. Lembrava do cheiro e parecia senti-lo ativo, subindo, tomando conta do nariz.

          A moça que gostava de sorvete era perfumada, ele sentia o cheiro passando; tinha os lábios de coração, os olhos verdes. Havia outras conhecidas, e desconhecidas, era só avançar.

          Mas Carol  voltava, aparecia de novo, misteriosa, olhos espaçados trejeitando. Entrava, as mesmas conversas, cabelo cheio caindo pelos ombros. Ia para o quarto dele, ajeitava o forro da cama, o travesseiro, futucava coisas dentro do guarda-roupa. Ele ficava calado, assuntando de banda, surpreendido, desconfiado, satisfeito, temendo agora que Carol fosse embora para sempre. Um dia. “Quando?” O dia chegou.

          Ninguém lhe deu mais notícias dela. Nunca mais viu, também, a moça da sorveteria, de olhos verdes; nem as outras conhecidas, nem as desconhecidas. Deitava-se sozinho, esticava-se cheio de lembranças. À noite, quando ia dormir, sentia o cheiro de marisco, ativo, dos pés da cama para a cabeceira. Metia o rosto no travesseiro e sentia vontade de chorar.

(LINHAS INTERCALADAS)

Ariston Caldas

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (29)

Solenidade de Pentecostes - Domingo 04/06/2017


Anúncio do Evangelho (Jo 20.19-23)
— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo João.
— Glória a vós, Senhor.

Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”. Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor. Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. E, depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos”.


— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.


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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. André Teles:

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Espírito: o sopro que nos une

“Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)

De Jesus e do Pai fazemos muitas representações; do Espírito, muito mais que falar dele, invocamos a relação com Ele: “vem!”. Invocamos para vir Aquele que já está presente, o Realizador das transformações, o Possibilitador de toda relação, o Aumentador da vida.

O fogo, o vento, a água viva, são os símbolos mais potentes com os quais a Bíblia tenta dizer algo dessa Presença Possibilitadora de tudo o que vive, de sua força criadora e criativa, de sua imprevisibilidade, de sua capacidade para gerar sabedoria, saúde e beleza. São símbolos do movimento constante e do fluir silencioso dos processos que gestam a vida.

No relato da Criação, “a Ruah de Deus (em hebraico, Ruah é feminino) pairava sobre as águas”: trata-se de uma bela imagem da matriz ou útero originário fecundo de tudo quanto existe; tudo é amorosamente acolhido, fecundado, gestado, carregado neste grande ventre cósmico que podemos chamar divino: “Deus”. Alento, sopro, vento, respiração, força, fogo... com nome feminino que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia. Seu calor gera harmonia no caos, realça a beleza e originalidade de cada criatura, dando a cada uma seu lugar, o espaço que necessita para potencializar seu ser. Nessa relação adequada, cada  erva, cada montanha, cada ser que vive, tem seu lugar e seu sentido.

“O Espírito pairava sobre as águas” (Gen. 1,1). “Pairava” pode ser traduzido também por “vibrava”. Tudo vibra no universo: vibram as partículas e vibram os átomos, vibram as estrelas e vibram as galáxias, vibram os seres humanos, vibram o canto e a dança. Cada som é vibração e também o silêncio é vibração. O coração de cada ser, pequeno ou grande, pedra, planta ou animal está vibrando. A vida é vibração.

O Espírito que “pairava” sobre as águas é a imagem da vibração divina que habita e se move no coração de tudo quanto existe. O Espírito é a respiração universal. Tudo é energia, movimento, relação, e daí brotam maravilhosamente todas as formas de todos os seres, como de uma misteriosa matriz materna.

E o Espírito sempre está ali silenciosamente presente, como Aquele que vincula e une, como Tecedora constante de redes que fazem crescer, como Reparadora de todos os tecidos que um dia se rasgaram e se separaram do pano único de onde confluem todos os fios da vida.

Hildegar von Bingen dizia que o Espírito é “vida da vida de toda criatura”.  Cada dia é o primeiro dia da Criação; cada instante é o princípio. A Criação está acontecendo e renovando-se a cada instante e uma Energia profunda e criativa nos acompanha, nos anima e nos move. Estamos sendo criados; não estamos prontos e abandonados, não estamos condenados a um plano predeterminado e frio. Em tempos de Pentecostes é bom recordar e dizer a nós mesmos: “Somos criaturas, estamos sendo amorosamente criados(as) e impulsionados(as) a criar. Há esperança”.

Contemplar deste modo a realidade, nos move a confiar, esperar, respirar. Contemplemo-la assim: a realidade inteira alentada e fecundada sem cessar pelo Espírito materno; a realidade inteira carregada de infinitas e novas possibilidades, carregada de Infinito. Podemos esperar.

Hoje somos conscientes e podemos agradecer essa presença do Espírito nos perfumes que a humanidade exala: no seu empenho pela paz e pela justiça, na contribuição à integridade da criação, na sua cumplicidade com os ciclos que favorecem a vida, no potencial de ternura, de cuidado e de resistência frente a todas aquelas situações e forças que desintegram a vida, na ação colaborativa, na interdependência, no diálogo e na abertura às diferentes culturas e às diversas tradições espirituais, maneiras novas e necessárias de situar-nos no mundo. Tudo isso é sinal do movimento do Espírito.

Desde o momento em que entramos no mundo, nascemos formando parte de uma rede de relações. Este tecido relacional vai nos expandindo ao longo do crescimento. “Ao final de minha vida abrirei meu coração cheio de nomes” (Pedro Casaldáliga). O Espírito é o que escreve os nomes que vão conformando nossa vida, nos quais fizemos experiência do que significa isso que chamamos amor e que está gravado em nossa origem e em nosso destino, como nossa fome maior e como nosso dom mais apreciado.

A imagem do “soprar sobre eles”, no evangelho de hoje, contém uma riqueza elegante: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria respiração, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo. É uma imagem que nos faz reconhecer o Espírito como o Alento último, o Dinamismo vital que pulsa em todas as formas de vida que podemos ver e que nelas se manifesta. Não há nada onde não possamos percebê-lo, nada que não nos fale d’Ele. Por isso, a comunidade dos seguidores de Jesus, ao compartilhar com Ele o mesmo Sopro, torna-se uma “comunidade conspiratória”, ou seja, “conspirar”, “com-inspirar”, “respirar juntos”; ao soprar o Espírito Jesus e os discípulos respiram o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma utopia do Reino...

Não é estranho que, com o Espírito, Jesus se refira à missão: é o mesmo Espírito – seu sopro – Aquele que O conduziu e quer conduzir a nós também.  O Espírito e nós não somos dois. Somos “seres espirituais vivendo uma aventura humana” (Teilhard de Chardin). Quando tomamos consciência desta realidade profunda, realizam-se em nós as palavras de Jesus: a unidade de tudo morando em nós, no Amor – outro nome do Espírito -, como única realidade que tudo sustenta e constitui.

Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.

Por isso, Pentecostes não acontece até que, reconhecendo o Espírito como nossa Identidade mais profunda, nos deixemos guiar por Ele, ou melhor, viver a partir d’Ele, conscientemente conectados com a Fonte Primeira. Falar do Espírito e celebrar Pentecostes é, portanto, celebrar a festa, a vida e a Identidade última de tudo o que é e existe: é nossa festa.

Texto bíblico:  Jo 20,19-23

Na oração: “O Espírito urge!” Para abrir-nos a este “Sopro”, de modo que possamos experimentá-Lo no nosso “eu” mais profundo, precisamos calar a mente, abrir-nos diretamente ao que é, e perceber, com prazer, que podemos descansar sempre nisso. “Descanso” é outro nome do Espírito.

No silêncio da mente o Espírito se revela a nós, não como uma presença separada, mas como presença interna de tudo o que é: Cuidado, Descanso, Dinamismo... Vida em plenitude. E isso é o que somos todos.

Pe. Adroaldo Palaoro sj


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