Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa pela
Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da
Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Comendador
da Ordem do Mérito do Governo da Bahia.
Solenidade de Pentecostes | domingo, 23 de maio de 2021
Anúncio do Evangelho (Jo 20.19-23)
— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
João.
— Glória a vós, Senhor.
Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando
fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se
encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja
convosco”. Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os
discípulos se alegraram por verem o Senhor. Novamente, Jesus disse: “A paz
esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. E, depois de
ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A
quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os
perdoardes, eles lhes serão retidos”.
“Soprou sobre eles e disse: ‘recebei o Espírito Santo’” (Jo
20,22)
Corre pela rede este relato: uma pessoa idosa e com recursos
econômicos contraiu o Covid; os médicos, temendo por sua vida, aconselharam a
colocar-lhe um respirador; e ele começou a chorar. A enfermeira que o cuidava
lhe perguntou: “O senhor está chorando porque não tem dinheiro para
pagar o respirador?”. “Não – respondeu o ancião – choro
porque estive respirando gratuitamente toda a minha vida e só agora me dou
conta do valor desse grande presente”.
As circunstâncias desse enfermo e a dos apóstolos fechados
são semelhantes, pois eles se encontram confinados, um com a Covid e os outros
estão fechados no Cenáculo. Em ambos os casos está presente o medo da morte:
um, por um vírus maligno e outro, pelas autoridades romanas, que querem acabar
com o movimento de vida iniciado por Jesus. Também coincide o método curativo:
para o ancião infectado, um respirador que lhe injeta oxigênio nos pulmões;
para os discípulos de Jesus, a chegada do sopro divino que fortalece seu
espírito. A grande diferença é que o hospital cobra enquanto que o Espírito é
gratuito.
O relato nos ajuda a tomar consciência da presença do Espírito em
nossas vidas pois Ele, como o oxigênio, sempre esteve ao nosso lado, mas nos
acomodamos no habitual e esquecemos desse “ar vital” que nos mantém sempre
criativos, inspirados e sonhadores. O Espírito é nosso “respirador”
existencial. Por isso, é preciso, de tempos em tempos, uma sacudida – interna e
externa – para que nos recordemos dessa presença, muitas vezes silenciosa como
uma brisa, outra vezes como um vento impetuoso.
A liturgia cristã é muito sábia dividindo o ano com festas
que indicam os marcos mais importantes de nossa fé: a encarnação, ressurreição
e agora Pentecostes, que são como “toques” para despertar nossa atenção.
O Espírito Santo é o “oxigênio” que nos faz
respirar.
Descobrir, no dia-a-dia, que o Espírito é essa Presença
forte e terna ao mesmo tempo, e que, como o oxigênio para respirar, nos
envolve, nos habita e nos constitui; despertar-nos para essa realidade é muito
libertador. Mesmo estando em confinamento, essa Presença percebida como
silêncio, como proximidade, como força, como alegria..., se converte em
caminho, em Vida amassada com nossa vida, e nos “levanta-ressuscita” do sonho
quase apagado para conectar-nos com o Sonho de Deus, seu Reinado.
A festa de Pentecostes vem acompanhada de
muitos símbolos. Um vento que levanta e dispersa o pó que
estava sedimentado em nossas vidas, um fogo que aviva as brasas que
estavam apagadas em nosso interior; uma luz benfazeja que nos
possibilita ver com claridade o caminho que se abre diante de nós: a senda que
Jesus indicou para seus seguidores(as); uma força que afasta
nossos medos e derruba as paredes que dão a falsa sensação de segurança; o
Espírito é a Vida mesma de Deus: na bíblia, é sinônimo de
vitalidade, de dinamismo e novidade. Vento, fogo, luz, força,
vida... tudo grátis, ao alcance de nossa mão; basta abrir-nos à
presença inspiradora e mobilizadora do Espírito.
É o Espírito dos mil nomes..., nas religiões, na arte, nas
grandes descobertas, nos momentos de inspiração, nas experiências fundantes de
nossa vida. “A minha direção é a pessoa do Vento” (M.
Barros).
Foi o Espírito que impulsionou a missão de Jesus e que agora
se encontra também na raiz da missão da grande comunidade de seus seguidores e
seguidoras.
A imagem do Ressuscitado “soprando” sobre
os discípulos contém uma riqueza instigante: significa parti-lhar o que é mais
“vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu
dinamismo...
Na sua conversa noturna com Nicodemos Jesus tinha dito
que “o vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de
onde vem, nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo
3,8). O vento é livre; e tem tanta liberdade que ninguém pode
segurá-lo. O que Jesus destaca é a “liberdade” do vento, que não se deixa
escravizar, submeter ou dominar. É o símbolo perfeito da liberdade indomável;
uma liberdade que está ali onde está o Espírito.
O evento de Pentecostes nos remonta ao coração mesmo da
experiência cristã e eclesial: uma experiência de vida nova com dimensões
universais.
O dia da festa de Pentecoste é, de verdade, a festa dos
homens e mulheres livres como vento, festa do novo nascimento. E, neste mundo,
começará a ser possível a harmonia da liberdade com a igualdade, a comunhão com
o respeito à diversidade, a verdade com a acolhida do novo...
Viver uma “vida segundo o Espírito” é
deixar-nos recriar, deixar-nos mover, transformar, alargar.
Soltar as asas nos momentos mais petrificados e pesados de
nossa vida é sinal de sua silenciosa Presença.
De imediato, nos sentiremos livres do peso que fomos
arrastando durante tanto tempo e, por uns instantes, nos atreveremos a “viver
como filhos e filhas do Vento”.
O Santo Espírito é o sopro que vivifica,
anima, restaura e congrega. Pela linguagem do amor, Ele acende a luz da paixão
e permite desenvolver os dons da alegria, do entusiasmo, da compaixão, do
cuidado, da esperança e da fé inabalável. Tais atitudes construtivas não
são obra nossa, mas dom e fruto do Espírito, que se revela como algo agradável,
fascinante, belo, alegre, espontâneo, saboroso como um fruto.
Nós as vivemos, sim, mas é a “Ruah” que as desperta em nós,
pois elas estão presentes como “reservas de humanidade” em nosso
interior.
Somos “filhos e filhas do Vento”, a
Ruah de Deus.
Homens e mulheres do vento somos todos nós,
quando nos deixamos mover de acordo com os movimentos do coração de Deus e da
paixão pela humanidade. Movidos pelo Espírito de Deus, acreditamos e
construímos mediações libertadoras que promovem, incentivam e enobrecem o
espírito humano. Passamos a preferir a proximidade à distância, o dinamismo à
inércia, a criatividade à normose...
Nosso tempo pede que sejamos homens e mulheres do Vento, que
ajudam o mundo a respirar e sentir a vida palpitar; que buscam, na terra, viver
o sonho do Reino; que alimentam as chamas da esperança nos corações sonhadores;
que se reconhecem humildes ante a misericórdia e o infinito de Deus; que
acreditam na força dos pequenos e dos gestos simples; que vibram com as conquistas
justas e que se compadecem da miséria do humano; que cuidam de tudo e de todos
com ternura e carinho.
Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver,
escutar o Sopro daquela voz que habita a dimensão mais
profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa
existência.
É o Sopro que nos faz viver, e viver em
plenitude.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: Precisamos do Sopro que
verdadeiramente nos agite, nos empurre, nos arranque de nossa vida estreita e
estéril.
O Espírito é um dom para os fundamentos, não para a
maquiagem.
- Abra seus pulmões e deixe o “oxigênio” da Vida chegar até
às dimensões mais profundas de sua vida, talvez ainda não bem integradas; deixe
que Vento levante a poeira da acomodação, do medo, da insegurança... para o
despertar de um novo impulso vital., criativo e aberto.