Caixa de pandora
No meu refúgio deste 18° andar, o maior conforto é a falta
deliberada de televisão. Aqui se lê, se conversa, se estuda, se pensa, e nada
disso é interrompido ou prejudicado pela caixa de Pandora.
O leitor ainda se lembra da caixa de Pandora? Muitos
certamente já a terão esquecido, pois um dos efeitos da televisão é que hoje as
pessoas não se lembram mais das coisas. Das importantes, é claro, pois a
própria TV se incumbe de evitar que esqueçam as baboseiras e imundícies.
Apenas um rápido esclarecimento, para podermos prosseguir.
Na mitologia grega, Pandora abriu a caixa onde Zeus havia guardado todos os
males, e assim eles se espalharam pela Terra.
Sendo a TV o equivalente moderno – não mitológico, mas bem
real – daquela caixa funesta, isso já bastaria para eu mantê-la longe de mim.
Mas o principal motivo é ainda mais profundo: ela degenera nas pessoas a
capacidade de pensar, deduzir, comparar, encadear logicamente o pensamento,
memorizar, conversar.
Muito teórico isso aí? Vamos então aos exemplos práticos.
No meu refúgio, como já disse, não entrou a babá
eletrônica.
Quando preciso refrescar a cabeça, após algum trabalho mental
especialmente árduo, às vezes recorro à janela. Muito mais interessante, a
perder de vista.
Mas parece que eu continuo teórico, pois grande número de
pessoas consideram a janela apenas um pedaço de vidro encaixado num furo
retangular da parede, sem a utilidade específica de olhar para fora. Ou para o
alto, de acordo com o título poético Janelas para o infinito. A
constatação que faço é de fundo estatístico: Sempre que olho pela janela, não
vejo ninguém olhando pela janela. E são várias centenas delas, nos caixotões de
concreto armado ao meu redor.
Nessa distração de olhar pela janela (que não significa
bisbilhotice), observei em janelas vizinhas um fenômeno interessante. Em certas
horas, através de muitas delas se nota um pisca-pisca bem rápido, de luzes que
mudam de cor, mais intensas ou menos, numa sucessão aleatória. Na primeira vez
que notei isso, pensei por instantes que houvesse lá dentro uma festa, no
estilo que julgo ser o das discotecas. Mas logo constatei que em todas se
repetia o mesmo ritmo e o mesmo padrão de pisca-pisca. Não precisei pensar
muito para concluir que por trás de cada janela, numa sala em penumbra, uma TV
exibia o mesmo filme, propaganda, novela, ou seja lá o que for. E o pisca-pisca
multicolorido provinha dos cortes que se sucedem, nas mudanças de cena ou em
tomadas dentro da mesma cena. E os intervalos são cada vez mais rápidos,
segundo me consta.
Não o imagino, caro leitor, perdendo seu tempo diante da
pandorinha, mas entenderá as consequências de bombardeios como o desta
propaganda:
Um bonitão pilotando uma moto. [corte] O bonitão surfando
numa onda. [corte] O bonitão jogando futsal. [corte] O bonitão em voo de asa
delta. [corte] O bonitão escalando um pico. [corte] O bonitão sorridente entre
bonitonas sorridentes, bebendo o refrigerante Tô-em-todas. [corte]
Musiquinha: Tô-em-todas é legal! [corte]
Tudo isso em quinze segundos (afinal, tempo é dinheiro). E a
mesma coisa se repete em noticiários, filmes, entrevistas, esportes, shows.
Nesse bombardeio contínuo, a atenção é bruscamente desviada de um assunto para
outro, de uma imagem para outra, de um ângulo para outro na mesma cena, sem
conexão lógica e não deixando tempo para pensar, analisar, comparar, concluir.
Ao fim de duas horas disso em programas de diversos tipos, o quadro será extremamente
negativo:
Não lembro onde se deu um fato ou outro;
Não sei que importância tem cada fato;
Não comentei com ninguém os vários assuntos apresentados;
Não sei para que me serve ter visto aquilo tudo;
Não sou capaz de narrar com lógica o que foi mostrado;
Não relacionei nenhum comentário ou fato com outros;
Não avaliei nem julguei nada do que vi.
Qual o resultado no longo prazo? Ninguém precisa ser muito
perspicaz para perceber que a burrificação é consequência inevitável dessa
metralhadora visual e mental. Lógica, coerência, precisão, continuidade,
deduções, conclusões – cada um desses elementos é necessário para enriquecer a
inteligência, a cultura, a civilização. Mas não espere nada disso quando entra
em cena a TV pandorizadora.
Nunca me arrependi da decisão de manter muito longe da minha
residência a caixa maldita. E é o que recomendo a cada um dos meus leitores.
* * *