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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

ESPERAR É SABER – Péricles Capanema


29 de setembro de 2019

“Passeata dos Cem Mil”, em 26 de junho de 1968, no Rio de Janeiro

Péricles Capanema

“Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer”

É conhecido, os dois versos, símbolos das agitações de 1968 no Brasil, fazem parte de “Caminhando”, letra de Geraldo Vandré (ou “Para não dizer que não falei de flores”), ainda hoje repetidos a propósito de tudo e de nada. Não vou aqui discorrer sobre as disputas no interior da esquerda (inclusive a terrorista) refletidas nos mencionados versos. Quem conhecia as táticas revolucionárias, era a ilusão, poderia precipitar acontecimentos, passar por cima de atitudes prudenciais, enfatizadas por outros setores da esquerda, que postulavam a necessidade de esperar, em vista da apatia da opinião pública brasileira.
 “Pelas ruas marchando indecisos cordões”. O conhecimento traria a tática revolucionária eficaz, geradora da hora revolucionária, desencadearia engajamento nos vacilantes e apáticos; finalmente, causaria o acontecimento revolucionário decisivo.

Balelas. O amazônico acontecimento era outro. Ainda que escamoteado naqueles tempos em tantas análises, a apatia da opinião pública, que não aderia à pauta revolucionária, emperrava as possibilidades das correntes revolucionarias e inviabilizava seus planos. O povão estava noutra. Ainda hoje está noutra.

Com efeito, para ódio das lideranças comunistas e comunistoides, naquele ambiente de guerra fria, de choques entre comunismo e democracia liberal, entre religião e ateísmo, de tensões entre Rússia e Estados Unidos, o desinteresse popular pela esquerda no Brasil não publicado (ou divulgado) impedia o triunfo do programa revolucionário, favorecedor do bolchevismo.

Havia um matiz a pôr em relevo, existe forte ainda hoje: aderia de fato ao programa revolucionário apenas fatia minoritária da burguesia, do dinheiro ou da inteligência, enquistada sobretudo no alto empresariado, no clero, na academia e nos meios de divulgação. É a opinião publicada (diferente de opinião pública), gente muito divulgada. E, outrora como hoje, pois o quadro nas linhas gerais se mantém inalterado, tal fatia do público de forma arbitrária se julgava e ainda se julga porta-voz popular.

Convém lembrar, o ápice das mencionadas agitações foi a batizada pela mídia “Passeata dos 100 mil”, realizada em 26 de junho no Rio de Janeiro, várias vezes glosada entre outros por Nelson Rodrigues. Abaixo pincei um de seus comentários mais pertinentes:

“Vocês se lembram da Passeata dos Cem Mil, a famosíssima Passeata dos Cem Mil? Os meus leitores, se é que os tenho, já repararam que eu a cito muito. E por quê? Quem quiser entender as nossas elites e o seu fracasso encontrará nos Cem Mil um dado essencial. Não havia, ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça de bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites. E sabem por que e para que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O Brasil foi o nome e foi o assunto riscado. Picharam o nosso Municipal com um nome único: — Cuba. Do Brasil, nada? Nada. As elites passavam gritando: — “Vietnã, Vietnã, Vietnã!”.

Já disse, a situação continua hoje no miolo parecida à exposta pelo jornalista recifense décadas atrás: o povo distante das metas revolucionárias e um naco das elites, em parte por mimetismo e subserviência a modas estrangeiras, a elas atrelado. Formam um Brasil desnaturado, repito, mimetista e subserviente. Falador, expansivo — e divulgado. O mutismo toma conta da maioria. Será preciso que para felicidade nossa um dia os mudos falem. Para expandir uma boa influência.

É útil entronizar tal situação no alto de nossas reflexões ao analisar a presente crise a propósito da Amazônia e das queimadas que ali acontecem. Tal crise é muito mais presente no Brasil divulgado (o Brasil da opinião publicada) que no Brasil mudo. Aliás, a crise no presente está tomando rumo favorável ao Brasil. No curto prazo.

E no longo prazo? Só Deus sabe. É o que mais interessa, contudo. Desta crise, sob olhar de longo prazo, só vou pôr aqui em evidência um aspecto saneador, indispensável para sua boa solução, mas desconhecido quando não silenciado, como se poderá ver abaixo. Nunca devíamos nos esquecer dele.

Em síntese, agora um pouco utópico, mas que volte a ter relevância decisiva gente que represente de fato o Brasil no que tem de melhor em todos os âmbitos. É representação natural, nascida do fato, transcende a representação parlamentar e tende a moldá-la. Conta na vida real, ex facto oritur ius. Se não caminharmos nessa direção, o Brasil terá dias tristes pela frente. No caso, que seja excelente na correção, na inteligência, na habilidade, na firmeza. O clima seria outro, outros seriam os rumos e os resultados.

Existem ainda entre nós pelo menos raízes que, desenvolvidas, poderão dar origem a densa vegetação e finalmente dominar a paisagem, resgatando assim a imagem pátria, hoje maculada por quem não lhe quer bem. Será maneira de apagar incêndios, abafar queimadas, eliminar sequelas prejudiciais decorrentes da presente crise, se conduzida desastradamente. E de futuras.

Sem tal pano de fundo, o senso da necessidade de que o Brasil tenha uma representação à sua altura, será a bem dizer impossível escapar do ambiente tóxico em que a boçalidade, primarismo, oportunismo, arrogância, prepotência envenenam, por exemplo, as relações entre Brasil e França, de momento o entrevero mais doloroso, mas não único. É urgente que o vento leve embora tal fumaça e se restaure o clima puro, fresco, oxigenado, que em tempos passados começava a existir. Só nele os dois países poderão buscar seus melhores objetivos, sem sequelas de choques desnecessários, para dizer o mínimo. Pode demorar, é certo, mas que haja um trabalho nessa direção e se esperem os bons resultados. Esperar é saber.

Analiso então em rápidos traços a situação mais candente na crise atual, França e Brasil. A maior fronteira da França é com o Brasil. Mais importante que a linde extensa, a perder de vista, é a preservação e melhoria já de mais de século das relações especiais de apreço e consideração existentes entre os dois países; diria mais, tantas vezes de encanto mútuo. O francês já foi a segunda língua de todo brasileiro educado. E por sintomático repiso (já evoquei as palavras outras vezes) o que disse Fernand Braudel (1902-1985), dos maiores intelectuais franceses do século XX: “Foi no Brasil que me tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida, eu passei no Brasil”.

Também emblemático, fato narrado por Gilberto Amado (1887 – 1969) em suas memórias deixa ver a relevância de se manter tal clima. Corria 1933, o homem público sergipano havia sido convidado para falar sobre Direito Penal na Sorbonne para professores de Direito e pessoas ligadas à área jurídica. Auditório benévolo, mas muito exigente, parte da alta cultura francesa ali presente. Um professor da Sorbonne, Georges Dumas (1866 – 1946), amigo do conferencista, o havia apresentado sob luz favorável. A expectativa era grande. Gilberto Amado assim começou sua conferência: “En venant du Brésil, ce pays du soleil, vers la France, je viens de la lumière vers la clarté” [Vindo do Brasil, este país do sol, para a França — venho da luz para a clareza]. Conquistados e encantados com o gancho, os presentes aplaudiram vivamente. A conferência foi um êxito. Antes de começar a lição, vê-se bem, o conferencista, na época das maiores expressões da inteligência brasileira, inclinava-se contente diante de uma das principais características da cultura francesa e a homenageava. Ali as elites da inteligência, de um e outro país, se oscularam para bem dos povos francês e brasileiro. É insano desprezar acervos assim, nutridos pela História, existentes nos mais variados âmbitos da vida social, determinantes, quando bem utilizados, para as relações benéficas entre os povos. Sem tal perfume, as reações entre a França e o Brasil (e também relações com outros países) terão sempre um travo azedo.

Falei da inteligência. Tratarei agora da inteligência, tato e firmeza. Um último fato. Há maneiras superiormente eficazes de lidar com os atentados à soberania e nós já as presenciamos. Em 1905 e 1906 (o caso Panther) foi violada a soberania brasileira em Itajaí, caso de marinheiro que trabalhava na canhoneira Panther. De um lado, estava uma das grandes potências do mundo, grande poder militar, a poderosa Alemanha do imperador Guilherme II. De outro, um país fraco e agrícola, com as relações exteriores a cargo do barão do Rio Branco (1845-1912) [Foto ao lado]. Hábil, seguro, educado e firme, o barão conduziu o caso de modo a que, a Alemanha julgasse melhor pedir desculpas formais ao Brasil. Qualquer biografia objetiva do barão do Rio Branco descreve bem o incidente. Por nota datada de 2 de janeiro de 1906, o representante alemão no Brasil, barão de Teutler, asseverou, não houvera intenção alguma de se desrespeitar a soberania do Brasil, bem como reiterou os votos de amizade. Mais ainda, informou que os responsáveis pelo incidente seriam submetidos a julgamento militar. Aqui está nota da pena do chefe da diplomacia brasileira: “O Governo Brasileiro aprecia devidamente a retidão e presteza com que o Governo Imperial procedeu no exame e decisão deste caso, dando mais uma prova dos seus elevados sentimentos de justiça. Não pode, entretanto — quaisquer que sejam os usos das marinhas de guerra em outros países — deixar de lamentar que o Comandante da Panther tivesse incumbido oficiais e praças da sua guarnição de fazer indagações em terra, mesmo obrando com a maior reserva e prudência, para verificar o paradeiro de um desertor, tanto mais quanto o mesmo Comandante declara que contava com a boa vontade das autoridades territoriais, às quais compete, incontestavelmente, praticar as diligências de polícia necessárias para a descoberta, captura e entrega de desertores”.

Por que recordo tudo isso? Preliminarmente, para tirar do mutismo (ou melhor, do olvido e do desconhecimento) fatos que merecem ser divulgados. Em segundo lugar, para subir os padrões de comparação, é sempre estimulante ter diante dos olhos modelos de excelência. Em terceiro, para lembrar a importância de criar ambiente permeado de elevação, em que floresçam a compreensão e a admiração mútuas (prévio ao surgimento de problemas), que facilite o bom encaminhamento das soluções. Todos os brasileiros que prestam esperam que passem as nuvens tóxicas, acabem as queimadas em nossa reputação (e as desautorizadas na Amazônia), para que o ar se torne cada vez mais impregnado de civilidade, inteligência e busca efetiva dos interesses nacionais. Como no exemplo de Gilberto Amado e do barão do Rio Branco que, nos casos relatados, agiram de maneira eficaz favorecendo interesses do Brasil. Esperemos e trabalhemos com paciência, com a esperança de chegar a bom porto. Em muitas ocasiões, esperar é saber.



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NULIDADE RELATIVA - Merval Pereira


Mesmo sem entrar no mérito da decisão que o Supremo Tribunal Federal (STF) vier a tomar, na conclusão do julgamento sobre qual o alcance da nova regra que exige que o réu delator fale antes dos demais réus nas alegações finais dos julgamentos, houve na sessão de ontem momentos que são definidores da posição de vários ministros, não sem frequência discordantes entre si, mas ontem com algumas concordâncias heterodoxas.

O ministro Marco Aurélio Mello tirou o presidente Dias Toffoli do sério ao classificar a decisão de “jeitinho brasileiro”, pois não existe nada que indique na legislação em vigor que réus são diferentes entre si.

Para Marco Aurélio, que se orgulha de estar quase sempre na contramão de seus pares, o STF está legislando sobre um tema que não lhe compete, que deveria ficar a cargo do Legislativo. Ele também foi contra que o plenário definisse uma orientação a ser seguida pelo sistema judiciário como um todo.

Disse que uma decisão generalista deixará de lado aspectos específicos de cada caso, impedindo milhares de réus que se considerem prejudicados em seus julgamentos de recorrer. Isso porque a decisão do plenário de anular a condenação de um ex-gerente da Petrobras por ter sido ouvido ao mesmo tempo que seus delatores, deve ser estendida apenas aos que reivindicaram, e não foram atendidos, desde a primeira instância, essa prerrogativa de ser ouvido depois do delator.

Marco Aurélio alegou, concordando com o ministro Alexandre de Moraes, que haverá um tratamento desigual para casos semelhantes. O ministro Ricardo Lewandowski lembrou que réus que não tiveram condições de pagar um bom advogado podem ter perdido a chance de exigir essa prerrogativa que agora o STF tornou obrigatória.

Lewandowski e Moraes consideram que a nulidade é absoluta, enquanto Marco Aurelio não vê nulidade alguma. A maioria parece considerar que ela é relativa, e o que se discute é como demarcar a validade da decisão nos julgamentos já realizados.

A exigência de provar o prejuízo causado pelo não cumprimento dessa determinação é o ponto mais polêmico, porém importante, da proposta de Toffoli

Marco Aurélio disse que a decisão seria favorável aos tubarões, e que dificultaria o combate à corrupção. Mexeu com dois de seus pares, o próprio Toffoli, que em sua fala respondeu indiretamente, lembrando que a decisão vai alcançar todos os réus, não apenas os da Lava Jato, e ajudará também os mais pobres, e o ministro Gilmar Mendes, seu velho desafeto, que lembrou que sempre esteve a favor do combate ao crime, mas sem a utilização de outros crimes. Citou decisões que tomou para dizer que “aqui ninguém pode me dar lição de moral”.

O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, acabou apoiado pela maioria do plenário na sua proposta de definir uma tese para ser seguida pelo Judiciário em todos os níveis. Em nome da segurança jurídica e do interesse social, viu sua tese ser apoiada pelo ministro Luis Roberto Barroso, que deu os argumentos técnicos para confrontar a tese de Lewandowski, que exigia um quorum de 8 votos para aprovar o que chamou de “modulação” proposta por Toffoli.

Desde a semana passada o ministro Gilmar Mendes repetia que o STF não faria uma modulação, que trata de inconstitucionalidades, mas definiria os termos da decisão. Tratava de evitar a armadilha do quorum qualificado, no que foi apoiado pela maioria.

O ministro Gilmar Mendes aproveitou a ocasião para tratar do assunto a que mais se dedica, falar mal dos procuradores de Curitiba e do ministro Sergio Moro, a quem acusou de transformar a prisão preventiva em “instrumento de tortura” para obter confissões dos presos: “Quem defende a tortura não pode fazer parte desta Corte”, asseverou, referindo-se à possibilidade de Moro vir a ser indicado por Bolsonaro para uma vaga no STF.

Tanto ele quanto o presidente Dias Toffoli usaram e abusaram de pausas dramáticas nas suas falas, Toffoli rebatendo as criticas de Marco Aurélio, sem citá-lo, mas olhando-o fixamente. Gilmar, para citar trechos do The Intercept que revelaram, segundo sua indignação, atitudes dos procuradores da Lava Jato contra ministros e o próprio Supremo Tribunal Federal.

Gilmar deu mais atenção às acusações reveladas pelas conversas roubadas dos celulares dos procuradores do que ao caso em si, que tratou como mais um desdobramento dos abusos de poder cometidos pela “República de Curitiba”. No auge de sua indignação, insinuou um “fetiche sexual” entre procuradores e juízes da Lava Jato.

O Globo, 03/10/2019


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Merval Pereira - Oitavo ocupante da cadeira nº 31 da ABL, eleito em 2 de junho de 2011, na sucessão de Moacyr Scliar, falecido em 27 de fevereiro de 2011, foi recebido em 23 de setembro de 2011, pelo Acadêmico Eduardo Portella.

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