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sábado, 18 de setembro de 2021

PAPO DE CAMINHONEIRO, por Cyro de Mattos



                               Papo de Caminhoneiro

                                                         Cyro de Mattos

                

        (... os dois caminhoneiros estão no Restaurante Nego Bom, rodovia 301, em animado papo regado à cerveja.)

 

- você sabe quando vai acabar essa corrupção na República Pinapá do Piripicado? – pergunta o primeiro

- não faço ideia – responde o segundo 

- quando morcego doar sangue – responde o primeiro

- boto fé no novo presidente

- o que ele pode fazer com essa praga miserável?

-  com o presidente Louro-Brabo o jogo é outro, corrupção não                         tem vez

- pode não ser corrupto, mas pra mim não passa de um doido

- o homem é militar, está cercado de ministros militares, com ele ou vai ou racha, só esperar pra ver

- ver o quê?

- o homem está decidido a botar até tanque com canhão nas ruas,  tropa armada de metralhadora e granada,  mas ninguém vai ouvir falar mais  em corrupção na República Pinapá do Piripicado, o dinheiro público é do povo,  com o povo, para o povo, fora do povo  não há salvação, Louro-Brabo falou tá falado!

- ando farto desse engodo, meu caro, sai presidente, entra presidente, com o vírus da corrupção não há vacina que dê jeito, onde está o bicho-homem tem o fedor da mentira e podridão

- oh! que saudades que eu tenho dos anos que não voltam mais

- que saudades? que anos?

- do presidente Militinho com a sua sabedoria

- o que é que ele dizia?

- à paz, ao progresso, à igualdade de oportunidades, à vida sem fome para o pobre, ele dizia sim, à corrupção não!

- isso é bom pra se dizer, quero ver fazer acontecer

- não tiro sua razão

 

*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É também publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

* * *


SE PRECISAR, CHAME O AFONSO PENA

 Ignácio de Loyola Brandão


Encontrei Afonso Pena tomando suco de mamão com laranja na CPL. Nos encontramos todos ali, aos domingos de manhã. Antes da pandemia éramos oito, a ler jornal, trocar ideias, bem cedinho. Tinha quem emendava para o chopinho antes do almoço em dias quentes. Agora, somos quatro. Gradualmente os pequenos encontros cotidianos começam a ser reativados. Estava feliz, comuniquei: - Finalmente, de sorte, encontrei uma podóloga ótima aqui no bairro. Há tempos precisava dar um tratamento nos pés. A gente muda a vida, fica leve, solto.

- Podóloga? Por que não me disse?

Há tempos conheço uma ótima e aqui no bairro. Não tem melhor. Vou te dar o telefone.

-Não preciso marcar, a minha me deixa bem contente. A gente precisa ficar feliz e uma das maneiras é um bom trato nos pés.

- Não, você vai mudar. Nem imagina como a Rosanilce é incrível. Os aparelhos que têm. . .

-A minha tem todos, de última geração, impressionante a suavidade dela, as carícias que me faz com as mãos. Às VEZES, durmo.

- E que você não conhece a Rosanilce. A massagem dela é daquelas de harém de filme chinês.

Você cochila, tem sonhos celestiais. Vai, anote aí o celular dela. Aliás, vou fazer outra coisa. Eu chamo e aviso que você vai. Para que tenha tratamento especial.

- Não precisa se incomodar. Já agendei encontro coma minha para todos os meses. Não fizesse isso, não conseguiria vaga, há uma baita fila.

- Você não sabe o que está perdendo, mas é problema teu, cada um sabe o que os pés precisam. Azar o seu!

Passadas semanas, encontrei Afonso Pena na mesma mesa da padaria. Desta vez foi na calçada, o tempo estava ameno. Contei que vinha tendo uns engasgos esquisitos, talvez fosse o tempo seco, a poeira das sete construções em torno de nós na mesma quadra. Mas que iria ao médico naquela mesma tarde.

Médico? E quem é teu médico?

- José Eduardo de Lorenzo, filho do meu médico em Araraquara quando eu era jovem. O pai, Syrtes, o único Syrtes que conheci na vida, nome bom para personagem, era muito considerado.

- Qual a especialidade dele?

- Clínico-geral. . .

- Pare, pare, você tem que ir a um especialista. Tenho um impressionante. Tive o mesmo problema, achei queia morrer. Fui ao Pasetinho, cara superlegal, resolveu tudo.

-Mas o De Lorenzo é ótimo, engasgo é sua especialidade.

- Não é igual ao Pasetinho. Ele é tão bom que tem fila para agendar consulta. Fez cursos na Universidade de Illinois, em Nanterre, até salvou um xeque dos Emirados. Vou dar um jeito, você tem de se tratar com o Pasetinho, sujeito como figura humana.

Infelizmente o Pasetinho só tinha consulta livre para daqui a dois anos, andava tratando uma paciente superespecial chamada Tatiana, das maiores assistentes da Unesp. Deixei para lá.

Quarta-feira passada subia a pé para a Avenida Doutor Arnaldo onde ficam as floriculturas, uma atrás da outra, coisa bonita de se ver, vale passar a pé por ali para repousar a vista e a mente. Com quem dei? Com Afonso Pena. Toques de mão. Ele: - O que faz aqui?

- O que se faz aqui? Vim comprar flores.

- Escute! Venha cá! Sei de um lugar muito melhor para comprar flores. Você nunca mais vai comprar em outro lugar. Consegui me desvencilhar do Afonso, mas tenho um conselho a dar a vocês.

Se alguém tiver problemas com febre reumática, lumbago, coqueluche, falta de ar, dor na lombar, enxaqueca, refluxo, pressão baixa, labirintite, desequilíbrio, pedra no rim, precisa de uma costureira para emergência, um dentista, me avise, chamo o Afonso Pena. Ele conhece alguém melhor que o seu profissional.

O Estado de S. Paulo, 27/08/2021

 

https://www.academia.org.br/artigos/se-precisar-chame-o-afonso-pena

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.

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