(Buquim, Sergipe. 1936 – as duas casas)
Meu pai
vem passar uns dias comigo em Estância: sucos de graviola, caju, cajá, de manga
e umbu, almoços monumentais em casa de parentes, banhos de rio na bacia das
moças. Em sua cidade natal o coronel do cacau rejuvenesce. As três irmãs surgem,
curiosas, querendo conhece-lo, afoitas voltejam em torno do velho João Amado.
Velho? Anda pelos cinquenta anos, com a mão alisa os bigodes negros, ajeita as
mechas da cabeleira, os olhos brilham. Mede as moças, cada qual mais formosa,
passa a língua pelos lábios: sinto meu harém ameaçado.
Meu pai
leva-me a Buquim em visita à sua irmã mais velha, minha tia Yayá. Meu avô José
Amado de Faria faturou 21 filhos, 18 do primeiro matrimônio, 3 do segundo.
Yayá, primogênita, completara 84 anos e seu marido José era um ano mais velho.
Casa ampla
de comerciante rico, na praça central de Buquim, a sala de visitas é aberta aos
visitantes, os móveis caros e pesados são despidos de coberturas que os
resguardam, a ocorrência é solene: visita de irmão fazendeiro de cacau em
Ilhéus, de sobrinho escritor de nome nos jornais. Conversamos durante o almoço
grandioso, oito pratos, peixes, camarões, pitus, galinha – a galinha de parida
de minha tia Yayá, falada até em Aracaju -, carne de boi e de porco, feijão,
branco e mulatinho, arroz, farofa, abóbora, fruta-pão, jiló, maxixe, chuchu,
batata-doce, aipim, inhame, banana-da-terra e por aí afora, um desparrame.
Na mesa,
além do casal – minha tia Yayá é monumental, buço forte sobre o lábio, quase um
bigode, usa óculos, enrola o cabelo num coque alvo de algodão, ar de senhora
grada, meu tio José é um caboclo de muitos sangues misturados, o rosto aberto,
as mãos poderosas, a grenha e os bigodes brancos, o cigarro de palha, o riso
fácil -, além deles a filha viúva, a filha solteirona e o filho mais moço,
Antônio, único varão, terá seus cinquenta anos, por aí, bigodudo como o pai de
quem herdou as feições morenas e o riso cordial. Antônio, acanhado, conta-me
que leu Jubiabá e Mar morto, tece elogios. Três filhas morreram num surto de
bexiga e minha tia abortou de gêmeos. Aprendo histórias da bexiga negra que, em
mais de uma ocasião, lavrou em Buquim sua lavra de morte.
Após o
almoço tio José, lépido apesar dos 85 anos de labuta, toma do chapéu e da
bengala e nos convida a dar uma volta. Volta que nos leva à casa militar, numa
rua de canto, residência tão ampla quanto a da casa civil e ainda mais
agradável, pois fica no centro de vasto terreno plantado de mangueiras,
cajueiros, abacateiros, umbuzeiros, cajazeiras, pés de pinha, graviola e
fruta-pão, mangabeiras, uma roça de pitangas, além do agreste jardim de flores
tropicais.
Tio José
nos apresenta a Rosa, mulata bem fornida de carnes, risonha, a bunda vistosa
empinando a saia, formosura doce e sensual: hoje já não se fazem dessas mulatas
de antes, gordas e belas, são magras e xexelentas. Na carapinha bem cuidada uma
flor do campo, colares e pulseiras de ouro, os dentes de morder, admiráveis, os
olhos lânguidos, Rosa nascida para a cama. Várias crianças vêm correndo da casa
e do pomar tomar a bênção ao pai, a mais velha andará pelos quinze anos, a mais
moça, de meses, dorme no colo da ama-de-leite.
Redes brancas nas varandas, para a sesta. No comando de um
batalhão de mucamas Rosa serve doces e compotas incomparáveis: doce de banana
de rodinha, de jaca, de caju, de batata-doce de abacaxi, de limão inteiro e
descascado, cada qual mais divino. Que dizer do requeijão que os acompanha, a
manteiga escorrendo? O café fumega nos bules esmaltados.
Os olhos
cúpidos do coronel João Amado demoram nas ancas de Rosa, nos seios que se
revelam no decote da bata branca. Também meus olhos se perdem naquelas
formosuras.
Rosa
sentada atrás da rede onde tio José descansa pitando seu cigarro de palha,
faz-lhe cafuné, carinhosa, arrulha no riso de dentes brancos. No calor da tarde
a brisa convida ao cochilo, o tempo passa.
Vamos
regressar à casa civil, à majestade da tia Yayá, no portão da casa militar, ao
deixarmos a mansidão de Rosa, meu pai aponta o bando de crianças que corre
entre as árvores, os filhos da amásia:
- São
todos seus, José?
O velho ri
sob os bigodes brancos:
- Todos
meus, João Amado. – Amplia o sorriso, nos olhos a malícia e a ternura: - Meu
filho Antônio me ajuda um pouco...
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL,
eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido pelo
Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os
Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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