Ternura
Cyro de Mattos*
É preciso viver a vida com ternura. Não importa que seja um
pouco. Vale viver no tempo cativante que o dia oferta quando os seus ares se
fazem verdes. Felizes, tudo transformam
nesse momento fugaz, que comove, com seus lampejos trêmulos de amor. Pode até ser
ilusão esse momento que sentimos, mas com suas asas brandas, cores e sons que
acalmam, é bom que se repita, mostre que é capaz de reverter o que é triste em
dons da felicidade.
Ternura é esse cuidado que a mãe tem quando diz ao filho que
primeiro é a obrigação depois a distração.
Com verões e graça, tudo na vida passa. E o pai ao se despedir do filho,
sorrindo de contente, diz que você já é um homem, vá em paz, não se perca, nem
esqueça que sempre estou aqui. Logramos extrair no acento circunflexo da
palavra avô sensações que se alimentam de ternura, que não esquecemos, pois um
homem assim, no terminal das estações acumuladas com saber, consegue o feito de
ter o coração duas vezes com açúcar, tanto ele cativa e torna a vida doce.
A ternura da natureza tem seus hábitos protetores, que se
proliferam e também cativam, seguindo uma ordem onde tudo é vida ou morte, mas
com ordem. O passarinho transmite sua
afeição pela vida quando leva no bico o graveto para fazer o ninho. Daqui a
pouco estará levando no bico a comida para os filhotes. Daqui a pouco estará
voando com os filhos numa alegria que a natureza há tempos vem inventando
durante as estações.
A natureza mostra sempre que os bichos vivem à sua maneira,
cheios de ternura. A onça mais feroz fica mansa, ao lamber as crias com a
língua crespa, em ritual de afago e lambidas. Ai de quem tente interromper seu
amor às crias nessa hora mansa, em lambidas de doçura. Sua careta é tão feia que o mais corajoso
predador sai em disparada para num instante não virar janta da mãezona
zangada.
O gavião manso amanhece quando descobre a parceira para
construir uma nova família. Lá estão eles bem no alto, com os bicos que se
tocam e asas que abraçam. Lá como cá, embora fujam do verde odores do que
encanta, a vida prossegue, além o azul inocente ressoa. Doce e eterna ternura
penetra os seres e as coisas, revestindo nossa existência com o vento, o sol e
a chuva. É verdade, a ternura com seus
pendores perdura dentro de cada um de nós.
Aconteceu
que certo dia o menino sorriu o sorriso mais feliz do mundo quando pela
primeira vez entrou com o pai no estádio superlotado. Todo alegre ia ver o seu
time querido disputar a partida final do campeonato. Antes de a partida ter início, virou-se para
o pai com o rosto festivo, deu-lhe um beijo.
Podia até não saber que estava fazendo um gol de placa com a marca da
ternura, mas era o jogador mais incrível antes do vaivém da partida.
Outro
dia, um menino, que acreditava em Papai Noel, quando viu o velhinho sentado na cadeira do
supermercado, teve certeza que esse
homem gordo, vestido numa roupa vermelha, crescida barba branca, soltava pelas mãos corações, ao mesmo tempo que sorria fazendo rô, rô,
rô para cada um dos meninos.
No cinema,
quando o mocinho salvava a mocinha dos bandidos que acabavam de assaltar o
banco, o coração do menino queria saltar pela boca, de tanto alegria que tinha.
O mocinho ganhava um beijo da mocinha. Na cena final a ovação era geral, o bem
vencia o mal.
Ternura só
faz bem, mesmo quando a cena é triste e com ela a gente nunca se acostuma. Daquela vez ele viu quando a mulher pediu
para que ainda não descessem o caixão. Passou a mão no rosto do marido. Disse:
“Vá em paz, fique certo que haverá no caminho a sua estrela-guia.”
Ternura serve
para espantar os males. Ela opera o milagre de nascer no mesmo chão, adormecer
sob a vigília da esperança. Acordar, erguer-se com leveza, sair por aí para
acontecer com hesitante tremor enquanto dura a vida com os fios sem fim do
sonho no amanhecer fundamental.
*Cyro de Mattos é jornalista, cronista, contista,
romancista, poeta e autor de livros para crianças. Publicado em Portugal,
Itália, França, Espanha, Alemanha, Rússia, Dinamarca, México e Estados Unidos.
Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de
Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.
Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.
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