Na sala de entrada da casa de Adelaide havia, pendurado na parede, um quadro com a fotografia de uma moça bonita, de vestido branco com peitilho de renda e uma coroa na cabeça; no peito, uma cinta azul atravessada, com letras douradas, mas, de longe, Leni não conseguia decifrá-las; o reflexo do sol sobre o vidro atrapalhava a vista. “Só pode ser uma rainha ou uma princesa”. Lembrou da princesa Isabel, a dos escravos, desenhada num livro de história que dera no curso primário; lembrava bem do rosto de Isabel impresso no livro. Quando pudesse perguntaria a Adelaide quem era a moça do quadro. Perguntou e soube, não era nenhuma alteza, mas a própria Adelaide quando tinha dezoito anos de idade e foi rainha da beleza em sua terra natal.
“Como a
senhora era bonita!”, disse Leni. Adelaide fez um risinho disfarçado num canto
da boca, sentindo o “era” de Leni como um agravo, uma afirmativa que sua beleza
desaparecera. É, minha filha, veja o que a vida faz com a gente”, disse
Adelaide com fala abafada.
Leni sentiu
que lhe havia magoado e tentou remendar o que dissera: “a senhora continua
bonita, nem parece ser mãe de três meninos já crescidos”. Adelaide não deu
nenhum crédito à reparação e continuou afirmando que estava envelhecida; falou
das manchas escuras pelo rosto, dos fios de cabelo branco aparecendo, dos seios
sem a robustez daquele tempo do concurso de beleza; “hoje estou um caco sem
valia, cheia de pano preto, magra e sem ânimo para este mundo”, acrescentou
Adelaide. A essa altura da conversa, a cidade natal emergia em seu pensamento
iluminada e festiva; viu a casa onde morava, o quarto, o espelho quadrado onde
se olhava vestida no modelo para a coroação no palanque da praça pública; a mãe
lhe retocando a pintura do rosto, ajeitando detalhes o vestido branco de
organdi com peitilho rendado, passando uma flanela pelos sapatos brancos de
camurça; o pai entrando e saindo agoniado; “vamos minha gente, está na hora”,
as amigas ajudando. Depois, o palanque no meio da praça regurgitando de gente,
uma multidão; a filarmônica tocando, os discursos, os aplausos durante a
coroação dela e das princesas; mais tarde, o baile chique no clube social
especialmente decorado para o evento; os homens doidos de olho nela, as
mulheres morrendo de inveja; muita bebida, ramalhetes de rosas sobre a mesa
preparada para ela, os familiares e as duas princesas; “parecia um trono”. Agora
sonhava ser miss Bahia, Brasil e, quem sabe, Universo.
Lembrava de
Almir, quase seu noivo, enciumado pelos cantos, retraído, nervoso, mastigando
chiclete olhando-a assoberbada de gentilezas por todo lado, ela e as duas
princesas; do outro, o pai, a mãe e o paraninfo da candidatura dela, dono de
uma padaria. Almir achava que aquele lugar deveria ser para ele, mas nem exigia
coisa nenhuma, mesmo pretendendo noivar. Ciumava, passava olhando com raiva,
mordia os beiços, mastigava chiclete. Adelaide nem imaginava que mais tarde,
menos de dez anos, estaria casada com Bertino, guarda municipal e agora, já com
três filhos crescidos, sentia-se velha e os outros também achavam isso, como
Leni: “Como a senhora era bonita!”. Sentiu-se magoada, mais velha ainda; os
peitos murchos, o cabelo embranquecendo, as rugas, as manchas escuras pelo
rosto, varizes nas pernas. Lembrava do salão iluminado, da banda de música
tocando, os discursos, uma coroa dourada sobre a cabeça cheia de cachos bem-feitos,
uma faixa bonita atravessada, “Rainha da Cidade”; Almir a um canto, emproado,
cheio de ciúme, mastigando chiclete.
Adelaide recebera
o café em pó que pedira emprestado a Leni e voltou para casa do outro lado da
rua empoeirada, entre sombras remotas sumindo; “a mais bonita da cidade”. Afastou
o cabelo espalhado pelos ombros e lembrou novamente da velhice, dos seios que
não tinham mais a robustez daquele tempo quando fora coroada rainha.
Aumentou os passos ao lembrar que
havia deixado no fogo uma chaleira com água para coar café; “já deve ter secado”.
Leni, do
passeio da casa dela, olhava Adelaide pelas costas, envelhecida, diferente da
que via na foto parecida com a princesa Isabel.
Ariston Caldas
LINHAS INTERCALADAS
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