A Percepção Poética de Heloísa Prazeres
Cyro de Mattos (*)
Depois
da estreia com a Pequena história, antologia pessoal, a baiana (de Itabuna)
Heloísa Prazeres retoma seu processo poético com um segundo volume, Casa onde
habitamos (2016), formado de consistente união entre inspiração e transpiração,
intuições e reflexões, imaginações e registros. Nesse segundo volume, com a ilustração
de fotografia de Jamison Pedra, a poeta
usa a palavra simbolizada para metamorfosear o discurso da vida como resultado
de trabalhos de bastidor, achados nas zonas suspensas do sonho, fiações de
interiores sob o teto da terra, memórias para alcançar o entendimento no mesmo chão de suas origens.
Há nos
oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um
ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para o preenchimento
dos vazios no mundo. Assim, nos domínios onde a atribuição a um autor consiste
na boa literatura mesclada com
instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa ver que aqui estamos diante de uma construção
poética segura, de signo adornado pelo
som na cadência musical própria do poema,
que diz de emoções chegando da
memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o
ser.
Numa lírica
moderna ressoa o uso do vocábulo estrangeiro, a boa referência a poetas e
escritores de predileção pessoal, mas em especial o tempo que, na alma
enlaçando afetos e afinidades, busca outro tempo, marcado através de
experiências, revelações tantas perante a existência. Dividido em quatro partes, “Trabalhos de
bastidor”, “Antessala de sonho”, “Sob o teto da terra” e “Mesmo chão”, podemos
dizer que, nessa casa onde o eu lírico traça projetos efêmeros ante o eterno
que perdura, a chave para o seu conhecimento, distribuído em compartimentos
delimitados pelo assunto ou tema, o qual homenageia a vida, está na epígrafe de
Sophia de Mello Breyner Andresen, tão esplêndida poeta portuguesa quanto
luminosa contista, quando diz:
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Quando a reconstrução
do mundo no verso é convincente, faz pensar logo como a vida é falha, repleta
de contradições dentro de certo peso que impõe suas vozes agudas permeadas da
ambiguidade na passagem do tempo. Sendo falha, para equilibrar-se nos vazios, o
poeta recorre à linguagem literária
para inaugurar novos sentidos, lembrando assim que na quimera e na divagação,
na pureza de dicção superior, criativa, a vida torna-se viável. Utiliza por
isso lições plasmadas em linguagem específica para discorrer sobre o espanto da
vida e assim prosseguir na litania do verso,
que em si mesmo se sustenta e encanta.
O poeta
quer dizer com isso que o seu gesto de ler o mundo põe claridade nas partes
escuras que ocultam o mundo. O verso supre a deficiência crítica, repleta de
limitações, impossibilidades que envolvem aos humanos perante a experiência da
vida em que entra a solidão, o tédio, o azar e a tristeza. Embora existam as flores, sabe-se que elas
somem, mal surgem. Ao poeta Heloísa Prazeres, o milagre para que sempre
sobrevivam consiste em vê-las com a sua teimosia no deserto, em tácito
entendimento com as altiplanas montanhas de Nevada, como as encontramos no
afetuoso “Poema para os meus amigos”. Lembre-se então que, ressoando larguras e
profunduras, em mínimas cosmovisões de ternuras, disse Neruda que a flor da
alma na alma flora.
Na geografia
íntima da casa abandonada, Heloísa Prazeres não sabe “dizer se
havia/consentimentos, apelos/de viagens dominavam/ vontades. Seguro apenas/ o
mandato da aventura.” E, porque o
desafio consiste em ultrapassar a aventura do viver, o tempo dos legítimos
poetas é outro. Decide-se com os reclamos da alma, rumores urdidos com “mala
fixa e estética”, emoções e conceitos mesclados com a permanência de surpresas,
cismas e perplexidades. É o que
percebemos, por exemplo, no discurso singular do poema “Trópico do
capricórnio.”
Até mesmo no
poema “Familiar”, os versos livres de Heloísa Prazeres, de um ritmo quase
automático, de incrível rapidez e visibilidade, síntese e concisão, como quer
Italo Calvino, fixam-se na cena com assunto moderno, extraído do mundo internético
de hoje, o qual, instalado no grupo, faz
com que cada um fique hipnotizado no seu recurso, na cerimônia ao deus TIC -
Tecnologia da Informação e Divulgação.
Esse modo de
estruturar o verso nos tempos de hoje, embalado do eletrônico que não se ajusta
ao sol na manhã com esperança, só comprova que nessa casa de Heloísa Prazeres,
aqui e agora, com leveza e graça, densidade e clareza, a poesia está em tudo.
O poema
não engole o poeta quando provido de linguagem adequada e percepção do mundo.
Leitura Sugerida
PRAZERES, Heloísa. Casa onde habitamos, Editora Scortecci,
São Paulo, 2016.
*Cyro de Mattos é autor premiado no Brasil e exterior.
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