Quem Avisa...
“Fogo
de morro arriba,
Água
de serra abaixo,
Mulher de cabelo na venta
- Meu
Deus do céu! –
Quem
é que guenta?”
VERSO POPULAR
Dona
Enedina, da Fazenda Brejo do Meio, era muito mais conhecida do que o marido,
Godofredo Pereira (em documentos legais) ou Godô Titica – às escondidas e para
o resto da vida. Sujeito pinoia, esse Godô, um pinguim de homem, “raspa de
tacho” dos Pereiras, do Brejo de Cima, que foi gente boa, mais porém
afuleimada. Ninguém atinava com o porquê de o caçula dos Pereiras ser como era:
piruá no meio de pipocas. Para completar, o fulustreco era perdigoteiro
inveterado. Por via de algo estranho, inexplicável, o trem à-toa chegou ao
mundo sem ser esperado, dois meses antes da data prevista. Quando ainda menino
de escola, ganhou o acréscimo Titica ao
Godô, seu apelido certo. Com o correr dos anos, mas sem nunca lhe haver chegado
aos ouvidos a coisa infamante, simplificaram o apelido, e ele passou a ser
Titica, tão-somente. Já crescido – bom, crescido é força de expressão, porque,
mesmo pelanco, era do tamanho de menino de doze anos -, já crescido, e por
influência de rapazinhos sabidos, brincou com mulher pela primeira vez e se
estrepou. Além de umas coisas que lhe estragaram as vergonhas, que o
transformaram em alambique durante meses, destilando humores, ganhou ele uma
moléstia de pele que, agora, ao chegar a velhice, se transformara numa cafubira
danada. Braços e pernas lixentos, quando o comichão o atacava de repente,
ficavam em petição de miséria. Suas unhas sujas levantavam pequenas nuvens de
pó branco e fino, parecendo fubá de arroz. E o sujeitinho não paliava,
coçava-se à vista de qualquer pessoa. Nem Siá Dina conseguia botar um paradeiro
naquilo. Acabou largando de mão a coceira dele, empunhando com segurança as
rédeas do governo da casa, da fazenda, de tudo. Mandava e desmandava dentro e
fora dos seus limites territoriais. Daí, ser mais conhecida e respeitada do que
Godô Titica. A inclinação que ela tinha de ser mulher macha vinha de longe, em
desde ela mocinha, de cara sardenta e narizinho arrebitado. Não era fruto da moléstia
que se conservara escondida tantos anos na carcaça do Godô e, sim, necessidade
de colocar em ordem os negócios periclitantes do marido. Metera-se ele em
tantos e tão mal sucedido fora, que Siá Dina, um dia, após discussão na qual
ela não gastara mais do que uma gota de cuspe, e sem caridade pela cara de
inocente fracassado que estava diante dela, falara alto:
- Agora,
atino que você se derrotou. Tomo conta da trenheira toda. Enfio umas calças de
homem – de homem mesmo! – não essas que estão aí nessas suas pernas de menino,
e acerto as coisas. A obrigação mais pesada é a que temos na gaveta do compadre
Tinoco, né mesmo? Mais porém, tem prazo dilatado pra mais um ano, não foi o que
ele disse? Pois então? A gente não se afoga num dedal de água. A gente vende o
touro gademar – ele é menso, eu sei, mais porém vale bom dinheiro – umas dez
vacas do fundo, acerta os juros, diminui a dívida. Se restar o casco da
fazendinha só, a gente começa de novo...
Dito e
feito, Madrugadinha, Siá Dina estava de pé. O animal arreado, escarranchava-se
sobre a sela, que nem homem, e saía numa toada só, correndo as mangas, dando
ordens aos empregados, impondo sua vontade. Não escolhia montaria. Qualquer
uma, ao gosto, mesmo que fosse passarinheira ou fuá. Montava-a com desembaraço,
esporeava-a a preceito. Horas depois, o cavalo estava ofeguento, trocando as
pernas, tropicando, lavado de suor. Siá Dina suxava qualquer cavalo. Era
criatura que não gostava de lelês; mais porém, fumaçava à-toa. Dos fumegas, tolerava
Godô, porque não tinha mais jeito. Quando moça, diziam, era uma pintura. Ainda
hoje, apesar dos quarenta, era palpitosa, botava água na boca de muita donzela
enfeitada. Enquanto a mulher se esfalfava, tentando por ordem nos negócios, que
iam de mal a pior, Godô continuava a se coçar, ao embalo da rede, na varandinha
da casa. Fazia, agora, o que sempre fizera: alisava a palha, picava o fumo,
palmeava-o, enrolava o cigarro e acendia um na bagana do outro, amarelecendo de
sarro a bigodeira caída sobre os beiços murchos. Estava ele assim, o pito preso
entre os cacos de dentes, o olhar longe, perdido no céu azul sem nuvens,
sonhando de olhos abertos, quando percebeu que alguém estava parado ao pé da
escadinha da varanda. Fixou o vulto e nele reconheceu o Durvalino, camarada de
confiança de Sêo Tinoco, do Brejo de Baixo. Atrevido, o chapéu de abas largas
quebradas na frente da testa, um piraí trançado sobrando do cano da bota,
aproximou-se, bateu palmas, gritando, como se Godô Titica não existisse:
- Ô de
casa!
- Se
achegue e se abanque, Sêo Du. Vosmecê é de paz, e a casa é dos amigos.
A voz de
Godô era um fiapinho, contrastando com o tom abaritonado da do outro, um galalau
de homem, desempambado, cumpridor de ordens do patrão.
- Não me
abanco, porque vou adiante, mais légua e meia, em diligência. Trago um recado
do Major Tinoco, que manda dizer pra vosmecê que pensou e repensou no caso e
não pode mais esperar. Apareceram outros negócios...
- Mais,
Sêo Du, o compadre Tinoco não pode querer desgraçar a gente de uma vez. Ele me
deu a palavra dele.
A voz era
de quem estava alarmado, trêmulo, acovardado. Durvalino gozava o
constrangimento que lia na cara murcha de Godô, e sorria, fingindo comiseração.
De uma das janelas, a voz forte de Siá Dina interrompeu aquele sorriso de
deboche:
- O recado
já foi dado. Vosmecê não carece aumentar mais nada. A gente não manda o troco,
agora, porque nossa conversa com ele é particular. Vancê pode voltar,
recobrindo o rasto pra trás, que o mais eu ajeito.
Apanhado
de surpresa, Durvalino fez meia volta, tirou o chapéu, humilde, os olhos no
chão
- Me
desculpe, Siá Dina. Não salvei vosmecê porque não vi sua aproximação. Falava
pra Sêo Godô num recado mandado...
E ela,
enérgica, interrompendo-o:
- Falei
que o recado está dado. Vancê pode voltar, já disse.
Fechou a
cara, levantou a cabeça, pondo um ponto final na conversa. Durvalino saiu,
montou o piquira, ganhou a estrada.
- Vou na
casa dele, Godô, agora mesmo, ajeitar as coisas. Antão será direito a gente
perder as terras pra compadre Tinoco, sujeito sem alma, me arresponda, Godô, me
arresponda? Sinto inté uma coisa me subindo do umbigo pra riba, por via da
impostura dele.
Enquanto
isso Durvalino cismava: “Êta mulher macha, de cabelinho nas ventas! Gosto de
ver uma diaba assim, despachada, que tem pimenta na língua e fogagem no rabo. O
que deixa a gente dessossegado é ver uma prenda dessas dada a um caguincha
daqueles, sujeitinho sem talento para aguentar o rojão. Vai ver... o porqueira
não conhece nem a metade daquele mundo...”
Sêo Tinoco
ruminava o almoço, espichado na rede. Cochilava, de consciência tranquila,
certo de que teria suas terras aumentadas de mais uns cinquenta alqueires,
tomados às do Brejo do Meio, liquidando Tiririca e sua gente. Cochilava e
sorria. A rede ia e vinha, preguiçosa, acolhedora. Havia silêncio na varanda
ensombrada e fresca. Sêo Tinoco ruminava... a porteira do pátio bateu com
violência, os cachorros latiram, um bem-te-vi assustou-se, largou a
lagartinha-compasso que saboreava, voou para longe. Sêo Tinoco abriu os olhos
sonolentos e divisou a mulher sofreando o cavalo. Mal refeito do sono
interrompido, reconheceu a comadre.
- Ora
viva, que surpresa!
Avançou,
ainda incerto das pernas, para segurar o estribo – como se usa receber uma
visita cavaleira -, o sorriso aberto na cara assustada:
-
Desamonte, comadre, a casa é vossa, o oferecimento sai do coração.
Ofegosa,
sem mesmo desejar-lhe um “bom dia”, Siá Dina foi falando:
- Me
releva a falta, mas porém não desapeio, nhor não, porque, hoje, não vim visitar
a comadre Donana.
Tomou
fôlego, aquietou o cavalo, indócil por via de umas mutucas, batendo com a mão
espalmada no pescoço dele, continuou, meio engasgada:
- Vosmecê
sabe, compadre, que eu não sou mulher de leréias e pendengas. As coisas comigo
são no risco da lei, da palavra dada. Parece que vosmecê é homem de verdade,
falou que a gente ficasse descansada durante um ano, não foi? Agora, sem quê
nem pra quê, vosmecê mandou aquele recado arrevesado...
Sêo Tinoco
interrompeu-a:
- Ora,
comadre! Vosmecê não precisa sangrar na veia-da-saúde. O Du é sujeito especula.
Se andou falando coisas que não devia, é da conta e do risco dele. Não mandei
aviso pra dessossegar ninguém. – E, abaixando a cabeça, desconversando: - E o
compadre, como vai de saúde, está melhor dos incômodos? Já combinei com a
Donana uma visitinha, qualquer dia...
- Pois,
compadre, não foi entendimento enganoso, nhor não. Vim aqui pra desenturvar as
coisas e digo pra vosmecê, sem botar um só porém na minha fala... – Parou, as
mãos trementes tentando segurar as rédeas, o olhar firme na cara lívida de Sêo
Tinoco: - Se vosmecê procurar a justiça antes do prazo que deu pra nós, ninguém
de sua gente botará os pés nas terras do Brejo do Meio... A gente espandonga
vosmecê e os mais...
Deu de
rédeas, esporeou o cavalo, ganhou a estrada, soverteu-se na poeirada.
(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)
Nelson de Faria
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