Já
muito cedo a vila de Itabuna apresentava um movimento desusado. Naquele dia, as
famílias preferiam nem sair de casa, com medo do que pudesse acontecer. Nas
estreitas ruas, indivíduos ostensivamente armados, montando fogosos cavalos,
clavinote a tiracolo, desfilavam com ares intimidativos. Era a jagunçada que
circulava, arregimentando eleitores e provocando adversários. A votação era
para eleger o governador do Estado e, por isso, tornava-se sanhuda, pois
daquela autoridade ia depender a força do coronel da região. Além das arrobas
de cacau que colhia e do número de jagunços quer possuía, era da política que o
coronel tirava maior prestígio, o que aumentava a sua vaidade de aristocrata rural
e lhe dava maior força nos mandos e desmandos. Assim, a cata pelos votos era
disputa violenta.
No
dia marcado, mal rompia o sol, começavam a chegar os eleitores. Vinham dos
arredores e sobretudo das roças. Estas se esvaziavam, dando ocasião ao desfile
dos roceiros: pés descalços, os borzeguins iam amarrados um pé no outro pelos
cadarços e pendurados numa vara carregada no ombro; no braço, ia a roupa nova,
presente do chefe, envolvida numa toalha para ser mudada na vila. A grande
caminhada dentro dos matos cheios de carrapichos e atoleiros não dava condição
a esses eleitores de já chegarem enfarpelados à casa de seus chefes. Os que
vinham dos lados de Ferradas, contavam com um riacho, o Lava-pés, na entrada da
vila, onde se limpavam da lama antes de calçarem as botinas.
Dias
antes, as lojas de sapatos, chapéus e roupas estavam franqueadas a seus
eleitores, pelos coronéis.
Chegado
o dia do voto, nas pensões o caldeirão de feijoada já amanhecia pronto; no
fogão a lenha, fumegavam panelas de galinha, cujo cheiro se misturava com o dos
perus assados no forno. Este banquete era para os eleitores e a jagunçada.
Todos os eleitores tinham comida de graça, os vivos é evidente, porque os
mortos só apareciam nas listas de votação. Tudo podia acontecer num
dia de eleição: tiros, mortes, ameaças, pancadaria, burla. Os capangas tinham
carta branca. Daí o receio das famílias de se aventurarem a sair com tamanho
perigo.
Num
desses dias de votação, um grupo de jagunços de determinado partido político
lançou mão de um dos muitos recursos que usavam para impedir que os adversários
votassem. Em pontos estratégicos na entrada da vila, prostraram-se eles à
espera dos tabaréus que chegavam das roças. Não tardou que, um a um,
fossem aparecendo.
-
Menino! De quem você é eleitor?
-
Eu sou eleitor do coronel fulano.
-
Pode passar. Tá direito. É dos nossos.
Perguntavam
a outro que chegava mais tarde:
-
Você, menino, de quem é eleitor?
A
resposta vinha meio desconfiada, pois não sabiam a que partido pertenciam os
desconhecidos. Mas aventurava:
-
Eu sou eleitor do coronel beltrano...
-
Você não vota, não. Você vai é voltar pra casa, senão lhe cortamos a ponta da
orelha!
E
a bainha do facão caía de rijo no lombo do pobre coitado que voltava mesmo,
correndo, ainda dando graças a Deus por salvar a orelha e a vida.
Era
o início as noite. A eleição tinha chegado ao fim. Dois cavaleiros meio
encobertos pelos grossos palas que que lhes desciam até o meio das
pernas e as largas abas dos chapéus protegendo-lhes os rostos, pararam à porta
de uma vendola na beira da estrada que ia dar em Ferradas. Ao desmontar,
deixaram à mostra as pistolas que cada um portava, além de compridos punhais
trazidos presos à cintura.
Os
dois estranhos aproximaram-se do pequeno balcão e pediram cachaça.
-
O amigo não foi votar?
-
Não. – respondeu o vendeiro, moço novo chegado há pouco ao lugar. – Vim de
Sergipe sabendo que aqui tem muitos assassinatos e eu não quero me envolver em
política.
-
E quem são os assassinos aqui? O que vosmecê tá querendo insinuar?
-
Nada não. É que ouvi histórias dos jagunços que matam de tocaia.
-
Aqui nesta terra só tem é macho valente!
-
Valente é quem enfrenta homem cara a cara.
-
O que tá querendo dizer?
-
Esses jagunços são todos uns covardes. Eu gostaria de ver um deles enfrentar um
homem frente a frente.
-
Olha que ainda vai ver.
-
No dia em que isso acontecer, eu vou ser padre e celebrar missa, porque nunca
vai acontecer.
-
A conversa já foi longe demais, homem.
As
últimas talagadas de cachaça foram tomadas e as derradeiras cusparadas ficaram
no chão de terra batida.
Jogando
sobre o balcão alguns níqueis, os dois desconhecidos montaram nos seus cavalos
e partiram a galope sumindo na escuridão da noite.
O
tagarela imprudente apagou o fifó da vendinha e foi dormir.
No
outro dia, o sol já se levantara a um bom pedaço de tempo, quando três
indivíduos entraram na bodega e intimaram o dono para uma pescaria. Era um
domingo silencioso, como todos os domingos de roça.
Reconhecendo
os dois visitantes da véspera, o apavorado vendeiro logo sentiu o pior.
-
Pelo amor de Deus, o que vocês querem de mim?
-
Você vai pescar – disse um. Enquanto falava, foi arrancando o pobre coitado de
detrás do balcão. Agarrado de um lado e de outro, em pânico, trêmulo, sem ter
para quem apelar, foi sendo levado em direção ao rio. O lugar era deserto. Além
disso, o alto barranco e as moitas que cresciam nas encostas deixavam o local
longe das vistas dos passantes na estrada.
Num
trecho cheio de pedras baixas e lisas pararam.
-
Agora se benza e ajoelhe – disse um dos bandidos – porque você virou padre e
vai celebrar missa. – Dizendo isto, foi lhe vibrando em cima o chicote de
umbigo de boi.
-
Levante! – gritou o outro – Vire de frente, nos dê a bênção e se ajoelhe. – O
chicote estava caindo.
-
Você não disse que homem aqui não tem coragem de matar cara a cara? Pois vamos
lhe mostrar. – E o chicote foi caindo... caindo...
Era
meio-dia. O sol já estava a pino.
Com
as carnes rasgadas, o sangue escorrendo no lajedo quente, a pobre vítima
gritava e implorava por socorro e misericórdia, mas os seus gritos de dor e
depois os gemidos de moribundo se perdiam na amplidão do espaço. Dentro de
poucas horas estava morto e o seu corpo foi rolado para a correnteza do rio.
Além
dos três assassinos, a única testemunha muda desse bárbaro crime, foi o tranquilo
e silencioso Rio Cachoeira.
(TERRAS DO SUL)
Helena Borborema
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Helena Borborema - Nasceu em Itabuna. Professora
de Geografia, lecionou muitos anos nos colégios Divina Providência, Ação
Fraternal e Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade
de Filosofia de Itabuna, exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município.
Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de
Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação
se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano
daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras
do Sul’ são estórias simples, plenas de "emoção e humanidade, querendo
inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de
uma professora que crê no homem e na terra".
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