É NOITE. Na guarapeira
de João Boiada, um vaqueiro,
(uns bebendo, outros fumando...)
agora estão palestrando:
um caçador, um campeiro,
um tangerino, um menino,
e um afamado assassino
de nome – Juca Pampeiro.
Todos tinham combinado,
n ‘um episódio qualquer,
contar um trecho da vida,
do presente ou do passado,
mas onde entrasse a mulher.
JOÃO BOIADA
(Vaqueiro)
Para que vocês me pedem
que eu fale do meu passado,
que nada de mais contém?
Sou filho de um boiadeiro
das bandas de Macarém.
Fale um outro que quiser,
porque só há neste mundo
para mim, uma mulher.
Essa mulher adorada
é minha e chama-se Rosa.
Rosa, que foi bonitinha,
Rosa, por quem floresci,
foi a mais bela vaquinha
que encontrei entre a boiada
de toda essa caboclada
do sertão em que nasci.
Rosa é mãe de nove filhos.
Se é rosa um tanto murchada,
inda é rosa e há de ser sempre
rosa, e nada mais que rosa,
rosa murcha, mas cheirosa,
rosa sempre perfumada,
rosa que me coube em sorte,
rosa até depois da morte,
embora rosa esfolhada.
Somos um: não somos dois.
O mundo p‘ra mim consiste
nesta Rosa, esta roseira,
no roseiral dos meus filhos
e neste rosal de bois.
Minha história aqui findou.
Aqui ou lá no outro mundo,
se é que Deus já me escutou,
eu hei de ver os meus netos,
meus filhos e meus bisnetos,
vaqueiros, tal qual eu sou.
Agora tem a palavra
o Campeiro Zé Maria.
ZÉ MARIA
(Campeiro)
Sou natural da Bahia,
dessa terra abençoada,
que é terra de outro campeiro,
do Ruy, esse cavaleiro,
que com a palavra enfeitiça
a humanidade assombrada,
e campeando o mundo inteiro,
como um Peão da Justiça,
leva a Deus, que é o Fazendeiro,
a rês que anda tresmalhada.
.........................................
.........................................
.........................................
Não conheço o sofrimento
que tem por causa a mulher.
Ame lá quem bem quiser.
Neste mundo malfadado,
Deus não fez coisa melhor
que correr atrás do gado.
Mulher é a nossa desgraça!
Mulher é como a cachaça,
que é em toda parte encontrada!
Mas quanto custa encontrar
um batedor de gemada
pra se poder campear?
João Boiada: o teu prazer
é só cuidar da boiada
e dos teus, que é a tua Graça!
Minha glória é a vaquejada!
Meu sonho é uma musicada
num touro novo de raça.
Assim vocês me desculpem,
se da mulher não lhes falo.
Não há mulher, por mais pura,
que possa ter a candura
do coração de um cavalo.
Fale agora o caçador...
MANUEL COCO
(Caçador)
Antes de falar do amor,
digo a vocês que é basteira
a gente andar na carreira,
se estrepando nos espinhos
dos matagais do sertão,
para dar uma mussica
na cauda de um barbatão.
Eu só combato de frente!
Tanto mato uma serpente,
uma onça impertinente,
como um simples tamatião.
Quanto saber é preciso
para cortar num instantinho,
o gorjear de um passarinho,
com um tiro, que, ao mesmo tempo,
destrua o dono e o seu ninho!
O espoucar de uma espingarda
leve e boa, como esta,
alegra toda a floresta.
Eu juro pelo tinhoso
e Deus, que nos céus está,
que o estrondar de uma garrucha
tem muito mais harmonia
do que a voz de um sabiá!
Sou viúvo de uma serrana,
a quem tive muito amor!
Mas a vida soberana,
a vida de um caçador,
não dá tréguas para um homem
preocupar-se com a dor.
Inda hoje, meus amigos,
com um tiro cá da comadre,
matei um tamanduá,
um parari, um bauá
e, de quebra, um canguçu.
E já que falei em tiro,
atiro agora palavra
pra cima do Brejaú.
LEOPOLDO BREJAÚ
(Cangaceiro)
Sou caçador, como tu,
mas só mato os racionais!
Tu matas, porque és ingrato,
os pobres dos animais,
que são os donos do mato.
Manuel Coco, é ser cruel,
é ter alma de covarde,
atirar num jumará,
que está saudando a manhã,
e matar uma anaquan,
a sonhadora da tarde!
O caçador é um malvado!
Eu mato somente o homem,
porque o homem, Manuel Coco,
é o bicho mais desgraçado.
Sou cangaceiro!... Que importa!
A virtude é coisa morta!...
Só a mulher nos conforta!...
Eu já tenho no costado
para mais de vinte crimes,
mas não quero que se atente
contra a honra das mulheres,
que as mulheres, Manuel Coco,
são as coisas mais sublimes.
Talvez leve a vida inteira
sem ter uma companheira,
porque esta vida guerreira
não deixa que me enraíze
muito tempo num lugar.
Mas, se um dia eu me casar,
só há de ser com a Marocas,
a morena mais catita
que anda cá nestas bibocas.
Sustente agora o motivo
o seu Vicente Canela.
VICENTE CANELA
(Freteiro)
Falarei, sem mais aquela.
Tenho noventa e seis anos e até hoje seis mulheres
enterrei!!
Minha primeira consorte,
cuja morte inda lamento,
me deu tanto sofrimento,
que quase me sepultou!...
Mas o tinhoso a levou.
A segunda... (oh!!... a segunda!)
foi a mulher mais ciumenta
que Deus no mundo encarnou...
Era um anjo de maldade,
uma fera de bondade,
e foi talvez só por isso
que o demônio a carregou.
A terceira... Eu lhes confesso:
era perversa e era boa!
Mais mansa que uma leoa,
depois de quatro semanas
de casada, foi-se embora
e nunca mais me tornou!
A quarta, a Chica Fumaça,
era uma punga de raça!...
Cria de um senhor de Engenho,
foi a minha tentação!
Amava-me com paixão!...
Mas tinha uma adoração
por uma santa: - a cachaça!
A quinta, a Zefa Bodinha,
era viva, engraçadinha,
e feia! Porque negar?
Mais mansa que uma criança,
nunca vi mulher mais mansa,
mais mansa pra namorar!
Para salvar minha honra,
quantos homens, meus amigos,
não teria de matar?!
A minha sexta mulher
(quem me dera!... oh! Quem me dera!)
era também outra fera,
mas muito bem educada!
Sentindo algum azedume,
a fera tinha um perfume
que eu nunca vi neste mundo
numa flor mais perfumada!
A mulher não vale nada,
quando não cheira a ciúme!
Eu, com vaidade, lhes digo
que aqui neste pobre lombo
já levei muita tronchada,
mas apanhei com bravura.
Das águas que nós bebemos,
qual a mais fresca, a mais pura?
É a que nasce porejada
do ventre da pedra dura.
Seis mulheres enterrei!...
Mas inda não me emendei!
Sou noivo, amigos, sabei!
A minha noiva é formosa!
É a cabocla mais sestrosa
de toda esta redondela!
Ela há de ser meu coveiro
ou eu o coveiro dela,
ou não sou mais o freteiro,
o seu Vicente Canela.
Agora vamos ouvir-te,
Mata Brava, ó lenhador!
MATA BRAVA
(Lenhador)
Pois falarei, sim, senhor.
Se há glória em vencer um touro,
depois de no chão prostrá-lo;
se, montado num cavalo,
conduzir uma boiada
é uma bela e nobre ação;
se matar um cidadão
é uma vitória genial;
se é mostrar grande coragem
sangrar agora uma onça
e, depois, um cardeal...
eu lhes pergunto o que vale
este meu braço possante,
que vence uma perobeira,
qualquer árvore gigante,
só com um ferro, um ferro assim,
como este velho machado,
que repousa ao pé de mim?
Só é grande, meus amigos,
quem Deus já grande fizer.
Mas... sim... Antes que me esqueça,
eu vou dizer, num momento,
o que penso da mulher.
Não creio nem sou incréu...
Falo como um tabaréu...
Mas acho que todo homem
que casa com a formosura,
tem de cair na esparrela.
Ai daquele que procura
amor, na mulher que é bela!
Essa cabocla, a Gertrudes,
cabocla dos meus cuidados,
(pois já fez trinta e seis anos
que nós dois somos casados...)
é feia! Ninguém a quer!
Mas eu amo essa mulher,
que, por ser feia, é só minha!...
a mulher feia é rainha!
A formosura subjuga
e ruge em nossa cabeça,
como um tremendo tufão!
A fealdade é formosa,
é serena, é caridosa
e vive no coração!
A mulher quanto mais bela
tanto mais é cobiçada!
Poderá ser incensada,
adulada e requestada,
vaidosamente adorada,
mas amada?... Isso é que não!
A beleza é uma ilusão!...
E eu penso não ser preciso
dizer-vos porque razão.
Graças a Deus, seu Vicente,
a minha feia Gertrudes
não tem mais do que um senhor!
A noite vai refrescando
e aquela estrela apontando
para o seu Pedro Carreiro,
parece que tem um gesto
um tanto provocador.
Ouçamos Pedro Carreiro,
que deve ser traquejado
nas meninices do amor.
PEDRO CARREIRO
(Carreiro)
Porque vens sangrar-me o peito,
Mata Brava, ó lenhador?!
A mulher feia ou formosa,
para mim não tem valor.
Tudo é carne, meus amigos!...
E a carne veio do barro!...
Minha mulher é meu carro
Como eu não toco viola,
quando me vou de viagem,
cantando com os meus boizinhos,
ele vai me acompanhando
com os guinchos pelos caminhos.
Os guinchos do seu mancar
são muito mais comoventes
que os cantos dos passarinhos!
Não há homem cá na terra
que seja mais venturoso
com uma mulher a seu lado,
do que um carreiro, orgulhoso,
quando conduz, presunçoso,
o seu carro idolatrado.
Para quem nasceu carreiro,
todo carro é uma mulher,
e o carreiro – um namorado!
Meus senhores, eu lhes juro
que nunca no coração,
nem mesmo quando era jovem,
eu senti o beijo impuro
de qualquer uma ambição.
Mas.. digo de coração:
se algum dia eu fosse dono
de incalculável tesouro,
mandava fazer um carro,
todo de ouro, todo de ouro!...
Não por vaidades banais,
mas para enche-lo de frutas,
macaxeiras e batatas,
jerimuns, canas, bananas,
de todas essas verduras
colhidas nos meus roçais,
e andar com meu carro de ouro
pelas ricas Avenidas,
dando isso tudo à pobreza
das gentes das Capitais.
E basta! Não digo mais.
A mulher!?... Ora!... A mulher!
Que pensas tu, Pamperino,
dessa feroz jararaca?
JUCA PAMPERINO
(Criminoso)
É que não há neste mundo
mulher que velha uma faca!
Meu pai foi o assassino
de nome mais celebrado.
Foi também assassinado.
Morreu velho, com cem anos,
mas sempre triunfador.
Meu avô era um caboclo
valente e duro de umbigo
e que só tinha prazer,
quando encarava o perigo.
A todos que o respeitassem,
tratava com cortesia,
mas quem lhe fizesse
alguma,
pagava no mesmo dia.
Meus irmãos: a humanidade
nunca teve coração!
Deus, que fez todo o animal,
lhe dando à luz da razão,
só negou esse condão
ao homem, - rei da criação,
e à mulher, que é racional,
só por isso, meus amigos:
- por se ter feito rainha
do grande rei bestalhão!!
Eu não nasci para amar!...
Eu nasci para matar!
E, contudo, sou cristão,
pois mato por devoção!
Se não me engano, umas dez,
ou, talvez, doze mulheres
já dormem sono profundo
nos carcavões do outro mundo,
porque delas me enfadei.
Amigos, meu coração
é desta pernambucana,
que eu amo e sempre amarei!
Nessas correntes de palha
do Amor, o grande canalha,
jamais eu me acorrentei!
Quando vejo uma chinoca
querer fazer-me um vencido,
para, depois de iludido,
motejar do meu sofrer,
varejo-lhe a mão na boca,
arranco-lhe o coração
e dou aos cães pra comer!
Eu nunca matei um bicho
só por prazer bestial,
mas vocês não imaginam
meu prazer, minha alegria,
quando enterro a ponta fria
do meu dengoso punhal,
do meu punhal de assassino,
num coração feminino,
que é fonte de todo o mal.
Toda a paixão é funesta!
Amor, sem sangue, não presta!
Amor? É com o Tangerino,
ali, com aquele menino,
que anda sempre apaixonado,
a cantar, atrás do gado,
constantemente a sonhar!
CHICO TANGERINO
(Tangerino)
Seu Pamperino!... Eu respeito
o seu modo de pensar.
Agora, não me crimine,
se eu lhe disser, francamente,
que eu só nasci para amar.
O senhor diz que as mulheres
nasceram predestinadas
para morrer à facadas!
E, as mulheres, para mim,
são criaturas celestes,
são fadas abençoadas.
O homem de coração
não melindra uma mulher,
porque a mulher é divina!
Se a mulher não tem juízo,
é que a mulher, inda velha,
continua a ser menina!
Eu amo uma cafuzinha,
uma flor tão formosinha,
como o senhor nunca viu.
É filha de Mecejana...
Sua avó é uma serrana,
que lá para aquelas bandas
por muito tempo floriu.
Eu não sei se será minha!...
Mas já fiz uma promessa
à Virgem Santa das Dores,
que é minha boa madrinha.
Já me disseram maldosos
que ela gosta de um mocinho
de nome – Antonio Mangaba,
que é muito rico e formoso,
e que vive a tanger porcos
lá pra os sertões de Aguapaba.
Não sei que será de mim!
Mas se eu souber algum dia
que a mulher que é minha eleita
vive alegre e satisfeita
por ser muito bem casada,
pedirei à Santa Virgem,
que vive por muitos anos
com o tangedor da porcada.
Fale agora o Zé Mateus,
esse aclamado ancião,
que já tem mais de cem anos,
que foi o maior sambeiro
das festas deste sertão.
ZÉ MATEUS
(Sambador)
Fui sambador, Tangerino!
Fui sambador, meu
menino!
E sambador sem rivais!
Estas pernas, hoje bambas,
foram rainhas de sambas,
em noites que não vêm mais.
Que importa que os cantadores
cantassem lá seus amores
nos seus pinhos gemedores
e nas violas “cruéis”,
se eu, debaixo destas solas,
trazia duas violas,
a soluçar nos meus pés?!
Ai, noites de São João!
Noites do Santo dos Santos!
Alma das cordas e cantos
e das fogueiras do amor!
Mãe dos abraços e beijos,
dos inocentes desejos
dos foliões sertanejos
e deste teu sambador!
Foi n’uma das tuas noites
que eu vi a Chica dos Patos,
que era a fada destes matos,
- a terra natal de Deus!
A Chica que está tão feia!
Ela que era uma sereia!
E é hoje a minha candeia,
mãe dos doze filhos meus!
Foi n’uma das tuas noites,
das tuas noites gloriosas,
quando, n’um monte de rosas,
com estes pés beijava o chão,
que eu perdi, n’uma umbigada,
(vinha rompendo a alvorada!)
peito e alma e coração!
(Como se perde, São João,
meu São João, meu santo amigo,
o pobre do coração
n’uma pancada de umbigo?!)
Tudo passa neste mundo!
Só a saudade é que fica!
Coitada da pobre Chica!
Com que dor vejo os seus olhos,
pela idade emurchecidos,
seus cabelos branquecidos,
seus braços encarquilhados!
E aqueles frutos do seio,
que já foram tão viçosos,
e que parecem, saudosos,
dois ninhos abandonados!
Amigos! Sejamos francos!
Viver de cabelos brancos,
a relembrar o passado,
que inda morto, nos conforta,
pode ter muita poesia,
mas é sentir a agonia
da mocidade, já morta!
Mocidade... Ó mocidade!
Tu me deixaste!... És ingrata!
Eu tanto por ti chorei,
tanto por ti solucei,
que, afinal, me conformei
com a velhice, a enfermidade,
que lentamente me mata!
Agora, o que me maltrata,
não és tu! Mas a saudade
de ti, minha mocidade!
Esta saudade infinita!
Esta serpente maldita,
que se enrosca dentro d’alma,
só para roubar a calma
de um pobre velho vencido,
pela angústia encanecido,
com as suas forças quebradas
e um par de pernas inchadas,
que mal se podem mover,
pernas que já não são minhas,
mas que já foram rainhas,
e já fizeram, vaidosas,
muitas morenas dengosas,
muitas caboclas mimosas
por elas endoidecer!!
Mas, não!! Saudade bendita!
Não me deixes! Ressuscita
os meus triunfos de amores
daqueles sambas de então,
em que estes pés sedutores,
hoje tão cheios de dores,
já foram dois beija-flores,
voejando sobre o papogo
das rosas embraseadas
dessas roseiras de fogo,
dessas rosadas fogueiras
das noites de São João!
Amigos!... Por caridade,
demos um “morra” à Velhice
e outro “morra” à Enfermidade,
essas duas cascavéis,
e afinem vossas violas,
vossas violas revéis,
gritando todos comigo,
para que a dor nos conforte:
Viva a Vida e morra a Morte,
e bebamos, recordando
o tempo dos seresteiros,
em que, eu, o rei dos sambeiros,
rodopiando nos terreiros
das choças dos menestréis,
trazia, n’um pé de alferes,
a alma inteira do samba,
a ternura das violas,
a inspiração dos violeiros,
e o coração das mulheres,
debaixo destes meus pés!!!
Sim! Cantemos a saudade,
pois que tanto bem nos quer!
Mas, agora, meus senhores,
quem vai falar da mulher
é o grande rei dos cantores,
Flor da Noite!... O Trovador!
---------------
Dada a palavra ao violeiro
pelo grande sambador,
no recanto do terreiro
abriu as flores cheirosas
um cheiroso jasmineiro.
Até parece que Deus,
que a prima também consola,
para escutar a viola
tinha descido dos céus!
Pela sua descensão,
um galo de voz castiça
rezou a primeira missa
no grande altar do sertão.
Tudo em silêncio ficou!...
Foi quando o rei dos violeiros,
com a viola levantando,
foi a garganta afinando
pelo gemido da prima,
e pelo canto do galo,
que n’um soluço vibrou.
E foram estes os versos
que o caboclo improvisou:
“Não sei se posso dizer-vos,
com todo o ardor e paixão,
os versos que eu sinto agora
palpitando na sonora
viola do coração.
Vou consultar a vontade
desta de pinho – a Senhora,
que, às vezes, quer e outras vezes,
voluntariosa, não quer!
Não lhe estranho esses caprichos,
porque a viola é uma mulher.
O céu, todo rendilhado,
de estrela apavonado,
agora que a terra dorme
nestas horas mais desertas,
parece as asas abertas
de uma borboleta enorme,
voando em busca de Deus!
Pois bem: ouvi-me o que eu penso
dos homens e das mulheres,
nestes simples versos meus.
“Q sol é homem! É firme!
A lua é mulher – Varia!
O sol tem sangue de fogo!
A lua, calma e dolente,
tem sangue de gelo!... É fria!
De manhã, heroicamente,
vibrando um canto de guerra,
na crista daquela serra,
vê-se o sol enrubescer!
E a lua, com os seus caprichos,
que anda sempre com as estrelas
comadreando em cochichos,
não tem hora de nascer!
Finda a missão da jornada,
o sol, à hora aprazada,
vai-se numa apoteose
de azul e de rosicler!
A lua, sempre aluada,
sempre e sempre irrefletida,
não tem hora de partida!
Segundo a sua nevrose,
vai-se embora, quando quer!
O sol, que é o sol, (sempre o mesmo!)
na severa austeridade,
como o emblema da verdade,
caminha com impavidez!
A lua, se é hoje inteira,
amanhã vem por metade,
e, assim, vai escasseando...
vai minguando... vai minguando...,
até sumir-se de vez!
O sol fecunda as sementes
com os jorros incandescentes
dos raios embraseados!
A lua, essa alcoviteira,
só fecunda a sementeira
dos corações namorados!
O sol, sempre obediente
às ordens do Onipotente,
(com toda a sua energia),
nunca teve a ousadia,
de invadir a uma só noite
as plagas celestiais!
Mas quem já não viu a lua
deixar a noite, que é sua,
para andar no céu de dia,
desrespeitando a harmonia
das próprias leis naturais?!
Mesmo em nuvens empanado,
o sol, másculo e fecundo,
desde o princípio do mundo,
não deixou de iluminá-lo
com o facho do seu clarão!
A lua, se tem vontade,
nos brinda com a claridade,
para depois, sem piedade,
deixar-nos noites e noites
em completa escuridão!
----------
Mas se o sol, o sol radioso,
se o sol é um pão luminoso,
um cérebro em combustão,
a lua magnificente
há de ser, eternamente,
a hóstia do coração.
Se o sol morre combatendo,
em sangue rubro fervendo,
no meio de um fogaréu,
a lua sempre falece
rezando triste uma prece
e com saudades do céu!
O sol, desde que alvorece,
chama os grandes lutadores
para viver e lutar!...
A lua, quando anoitece,
surgindo em seus resplendores,
vai chamando os sonhadores
para com ela sonhar!
O sol, em perpétuo anseio,
sem escrúpulo, sem receio,
com a sua luz vigorosa,
com o seu fulgor requeimante,
descobre tudo o que é feio
e tudo que é repugnante!...
A lua, mais caridosa,
com a sua doce meiguice,
com a sua alma nazarena
e o coração lacrimal,
consola toda velhice,
toda lágrima queixosa,
porque é mulher e tem pena
da miséria universal!
Se o rei do dia, acordando,
abre a corola dos ninhos,
despertando os passarinhos,
para fazê-los cantar,
quando a rainha da noite
perlustra as plagas sidéreas,
remexe até nas artérias
do cérebro azul do mar!
Desde o instante em que transmonta,
sem repousar um momento,
a mourejar, solitário,
o sol, o eterno operário,
vai varrendo o firmamento
das infindas amplidões,
para, depois, vir a lua,
rodeada de escravas
de ouro,
ostentar todo o tesouro
das suas constelações!
O sol, que é o pai das queimadas,
das plantas carbonizadas
faz as grandes adubadas,
para com o sangue das cinzas
reverdecer o sertão!
Depois é que vem a lua,
como irmã de caridade,
com o seu óleo de piedade,
refrescar as queimaduras
da pobre vegetação.
O sol, o químico eterno,
que todos nós veneramos,
faz da terra, que habitamos,
um grande laboratório,
para a vida eternizar:
mas basta que a lua esponte
e os círios de ouro estelares
acenda nos seus altares,
onde começa a rezar,
para que logo
transforme
o céu, n’um zimbório enorme,
o espaço, n’um templo augusto,
e a Terra, n’um grande altar.
Mas para dizer-vos tudo
o que me vem à lembrança,
nestes versos que improviso,
segundo a vossa vontade,
eu vos direi, finalmente,
que o sol é sempre a Esperança,
e a lua é sempre a Saudade!”
***
Nesse instante, muito longe,
na crista verde da serra,
o azul do céu desmaiou!
Um galo alegre e saudoso,
batendo as asas, nervoso,
no seu clarim, clarinou!
Então o rei dos cantores,
com os olhos postos ao longe,
refinando a garganta
pela nota cristalina
do galo que além cantou,
“Companheiros”, exclamou:
“É a lua que se anuncia!
É a noiva do rei do dia!
A Sagrada Eucaristia
da mulher, Mãe de Jesus,
porque ela é o seio da noite
que nutrifica as saudades
de todas as orfandades,
com o leite da sua luz!
E para que fique eterna
a Saudade desta noite,
desta palestra assistida
pela presença de Deus,
como o velho Zé Mateus,
para que a dor nos conforte,
afinem vossas violas,
a Jesus Cristo louvemos,
e n’um só grito, gritemos:
Viva a Vida e morra a Morte.”
Quando o verso derradeiro
saiu do peito altaneiro
de Flor da Noite, o violeiro,
ao terminar a canção,
houve uma salva de palmas
de todas aquelas almas,
vibrantes de comoção,
porque, meigamente nua,
vinha despontando a lua,
em plena ressurreição!!
---------------
“Catulo Cearense é a flor máxima da flora sertaneja. A sua
obra é obra de arte e não de artifício. Não é a poesia anônima dos quadros do
sertão, , onde a beleza é um relâmpago fugitivo. O seu livro é essa beleza
captada, acarinhada, penetrada. É o relâmpago prisioneiro, pelas páginas em
fora, como uma esteira de luz.”
Amoroso Lima - Tristão de Athayde
(da Academia de Letras)
* * *
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