Realmente, dali para a frente só ouvimos francês e aprendemos, muitos
ainda o usam como segunda língua. Pessoas como Sidney Sanchez, que chegou ao
Supremo Tribunal Federal, Zé Celso que leu L’Être et le Neant no
original, a Luis Roberto Salinas Fortes, que traduziu Sartre e se tornou
professor de filosofia de primeira na USP ou o irmão dele, Hugo Fortes,
advogado de nomeada que leu Balzac inteiro aos 20 anos também no original, ou
Celso Lafer, o humanista e diplomata.
Fanny ao ouvir a frase em suposto
francês, diria, acabrunhada: Épouvantable. A Aliança Francesa deve ter ficado
estarrecida e preocupada: se as pessoas pensam que isso é francês, não é não.
Também não é gíria, nem linguagem de malandro. Onde terá ele aprendido tal
língua? Na Sorbonne não foi. Ali estudaram André Breton e Susan Sontag, Madame
Curie e Lévi-Strauss, Sartre e Simone (vejam a intimidade), Derrida, Jorge
Coli, FHC e Celso Furtado. Se o jurista queria impressionar, porque não se
exibiu em curdistão, ou sânscrito, na língua dos Keftin, na dos hititas, quem
sabe no ugarítico?
Lembrei-me de uma história acontecida comigo e com o jornalista Humberto
Pereira, o criador dessa joia que é o Globo Rural. Estávamos em Paris, décadas
atrás, e ele me viu saindo da Sorbonne, nas proximidades da Rue Cujas, onde eu
estava hospedado. “O que estava fazendo aí?”, ele indagou. Sorri: “Ora, estudo
aqui, pós-graduação”. Mostrei três livros comprados na Livraria LGDJ, ali
vizinha, especialista em obras jurídicas, a pedido de meu amigo Fernando
Passos, advogado de minha terra. Pereira abriu os olhos deste tamanho, mas
entendeu, me fez um sinal: você não perde por esperar. Não revelei que vi uma
porta por onde alunos entravam, fui atrás, queria ver por dentro escola tão
famosa. Andei um pouco, fui interpelado por um bedel e posto para fora.
Na mesma viagem, cheguei a Milão e
Humberto estava lá com sua mulher Hebe. Almoçamos e fomos conhecer o Teatro
Scala. Há coisas necessárias. Entramos, Humberto e Hebe desapareceram. Certo
momento, eu estava na plateia, havia pouquíssimos turistas, sentei-me para
sentir a atmosfera, esperando ver de repente Maria Callas. Foi quando ouvi: “Eu
tenho uma mula preta tem sete parmo de artura/ A mula é descanelada tem uma
linda figura/ Tira fogo na carçada no rampão da ferradura...” O mais puro
Tonico e Tinoco. Olhei em volta e vi em um dos camarotes Humberto a cantar e a
me acenar sorridente. Entendi. Na saída ele me disse: “Você estudou na
Sorbonne, eu cantei no Scala. Estamos quites”. Nos regalamos com um belo
jantar. Hoje penso, será que assim o desembargador estudou na Sorbonne? Não
parece coisa de currículo de ministro bolsonarista?
O que me incomodou foi um homenzinho
que parecia cordial, plácido, bonachão, de repente levado pela insegurança a se
transformar em virulento, a dar carteirada sem propósito e humilhando um
servidor público ao xingá-lo de analfabeto. Dominado por um complexo de
inferioridade, buscou afirmação diminuindo o outro. Ora, segundo aprendi na
escola e confirmo aqui no Aurelião, analfabeto é quem não conhece o alfabeto.
Quem não sabe ler e escrever.
Fiquei intrigado. Como pode ser
analfabeto o guarda que escreve a multa? Se estava escrevendo significa que foi
à escola, aprendeu a escrever e a ler. Não soubesse ler, não saberia nem que
lei aplicar naquele homenzinho da lei, surpreendido ao contrariar uma lei.
Portanto, tinha formação o guarda Cícero. Aí, o indignado mostrou sua
importância falando francês errado e ignorando a lei que ele deveria defender.
Ou seja, aquele senhor foi surpreendido com as calças na mão como se costuma
dizer. Ficou feio, passou vergonha e o Brasil inteiro viu. Viralizou, virou
meme. Não sei quem é superior a um desembargador na hierarquia jurídica. Mas o
formidável desembargador xingaria um juiz do Supremo de analfabeto?
Naquela hora me veio velhíssima
história, ainda de minha infância. No quartel, o marechal deu uma raspança no
tenente. Este, irritado, transferiu a raspança ao major, que por sua vez
descontou no brigadeiro, que foi em cima do coronel, que acabou com o tenente,
que advertiu o capitão. Aí, o capitão deu em cima do sargento, que foi para
cima do cabo, que pensou terminar no soldado. Este olhou em volta e chutou o
indefeso cachorro. Último elo da cadeia. O guarda Cícero foi de impressionante
dignidade.
O Estado de S. Paulo, 24/07/2020
https://www.academia.org.br/artigos/o-intrepido-que-rasgou-multa
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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo
ocupante da Cadeira 11, da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do
Acadêmico Helio Jaguaribe.
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