Dia 31/07/2018, a convite do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia (IGHB), gentilmente intermediado pelo jornalista Jorginho
Ramos, o poeta Florisvaldo Mattos proferiu palestra, no auditório do Instituto, em seminário pelo
transcurso dos 220 anos do movimento denominado Revolta dos Búzios. Nesse
evento comemorativo de significativo fato histórico da Bahia, Florisvaldo
Mattos dividiu o palco com as também palestrantes, professoras e historiadoras
Antonieta D´Aguiar Nunes e Patrícia Valim [foto acima].
Sobre o movimento Revolta dos Búzios Florisvaldo Mattos
escreveu o livro "A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates", que a
Assembleia Legislativa da Bahia lançará no próximo dia 24/08/2018, às 18 horas,
no próprio IGHB.
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Boa tarde a todos.
A minha participação nesta sessão especial decorre do
transcurso de redondos 220 anos de um agosto sombrio em que um terremoto
sociopolítico abalou o morno cenário colonial-urbano da então Cidade da Bahia,
com a eclosão e consequente dizimação do que a memória hoje celebra sob o
rótulo de Revolta dos Búzios, que me inspirou um livro a ser lançado no próximo
dia 24, às 18 horas, em segunda edição, pela Assembleia Legislativa da Bahia,
nesta mesma consagrada casa de cultura em que ora nos reunimos, mas
anteriormente fruto de uma dissertação de Mestrado em Ciências Sociais na
Universidade Federal da Bahia, na qual foi meu orientador um dos altos
luminares dos estudos históricos baianos o saudoso professor e folclorista José
Calasans.
Nesta obra intitulada A comunicação social na Revolução dos
Alfaiates, deixando a parte essencialmente histórica à reconhecida competência
dos historiadores, entre eles o professor Luiz Henrique Dias Tavares, a meu
ver, seu mais destacado estudioso, preferi abordar, talvez pioneiramente, um
ponto crucial que consistia em definir o papel da comunicação social na dita
insurreição, optando pela designação mais repetida entre os seus estudiosos, hoje
mais popularmente chamada de Revolta dos Búzios, que ocorreu na última década
do século XVIII, quando um grupo de pessoas preponderantemente da mais reduzida
condição social intentou promover na Bahia um levante, visando libertar o
Brasil-Colônia do jugo colonizador de Portugal sob o primado de múltiplas
bandeiras, tais como independência da Capitania, implantação da república,
abolição da escravatura, igualdade para todos, livre comércio com as nações do
mundo, interrupção do vínculo com a Igreja do Vaticano, instituição do trabalho
remunerado, melhoria do soldo militar e garantias para os plantadores de cana,
fumo e mandioca, assim como para comerciantes.
No que se refere às ideias dos que estiveram engajados no movimento de libertação, esse caldeirão efervescente pressupõe um vasto campo de procedimentos para obtenção de consenso em torno dos propósitos da intentada revolta, em que predominavam as relações de comunicação. No entanto, desbaratada a revolta, o resultado de tão elevada aspiração ficou na história como exemplo máximo de sofrimento, crueldade e tragédia, recaindo as penas de enforcamento, seguido de esquartejamento e exposição de despojos fixados em postes e espalhados por vários pontos da cidade, sobre quatro dos envolvidos, dois deles soldados (Luiz Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas do Amorim Torres) e dois artesãos (João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate, e Manoel Faustino dos Santos Lira, então oficial alfaiate, mas ex-escravo), livrando-se da punição severa um quinto personagem, Luiz Pires, também artesão, porque fugira, sem deixar rastros.
Tem-se uma ligeira noção desse quadro com a descrição do que era Capital da Bahia em 1798, ano da erupção e derrocada do movimento. Enquadrava-se no que a sociologia costuma definir como típica sociedade de vizinhança, aquela em que a relação entre as pessoas se estabelece por via basicamente oral, isto é, por canais diretos de comunicação, com a escrita (canal indireto) funcionando como forma subsidiária, sujeita a graus de instrução e, por isso mesmo, constituindo-se patrimônio e exercício de poucos.
Predominava neste específico momento baiano do século XVIII
uma vasta rede de contatos interpessoais, envolvendo diversas camadas da
população, escorados em múltiplas formas de transmissão direta de conteúdos e
atitudes, tais como conversas, relatos orais, gestos, cantos, símbolos óticos,
pregões de rua, boatos, festas, lamentos, banzos, gírias, apelidos, jogos,
hábitos, serões, desfiles, vestuário, comidas, vadiagem, erotismo,
maledicências, obscenidades, violências, rixas, desordens, algazarras, ritos,
missas, sermões, procissões, anedotas, versos, epigramas, discursos,
convenções, casamentos, bodas, enterros, e formas outras, a percorrer a vasta
teia de signos icônicos, indiciais e simbólicos, conjeturada por Charles
Sanders Peirce (1839-1914), num verdadeiro espetáculo sensorial, urbano e
rural.
A estrutura social baiana da época assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado, e os chamados lavradores proprietários, que só se distinguiam daqueles por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.
A estrutura social baiana da época assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado, e os chamados lavradores proprietários, que só se distinguiam daqueles por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.
Em uma de suas célebres Cartas Soteropolitanas, Luiz dos
Santos Vilhena descrevia, produto de observação visivelmente empírica, o quadro
de classes em que se dividia a população da cidade: “corpo de magistratura, e
finanças; corporação eclesiástica; corporação militar, (...) corpo dos comerciantes,
(...) povo nobre, mecânico e escravos”. Supõe-se que o segmento dos artesãos se
inseria na designação de povo mecânico, omitindo-se também os servidores da
administração colonial.
A educação formal se limitava ao ensino imposto e
administrado pela Igreja, isto é, pelos jesuítas, reduzindo-se o estudo às
disciplinas da chamada Ratio Studiorum, ministradas em suas escolas de “ler,
escrever e contar”, a que poucos tinham acesso. Não havia universidade,
tampouco bibliotecas, livrarias e imprensa devido às rigorosas proibições
impostas pela Coroa portuguesa, desde o início da ocupação do território.
Segundo o historiador Luís Henrique Dias Tavares, os livros e outros escritos
chegavam da Europa “nas cabeças, em baús amarrados, de jovens brasileiros estudantes
em Coimbra”, enquanto Nelson Werneck Sodré, mirando o Brasil-Colônia como um
todo, garantia que vinham de contrabando, totalmente às escondidas, e outro
historiador, P. Pereira dos Reis, sustentava que, pela falta de tipografias,
proibidas por um alvará de 20 de março de 1720, “livros só chegavam por
contrabando, vendendo-se na colônia, em todo o século, apenas catecismos
tabuadas e cartilhas”, embora a proibição acerbasse o gosto pela leitura de
obras de enciclopedistas e filósofos franceses, “importadas clandestinamente”.
E quanto à população? O mesmo Santos Vilhena situava a Capitania em menos de 200 mil habitantes, estimando 50 mil para o Recôncavo, menos de 60 mil para a Capital e menos de 100 mil para o resto da Capitania, o que praticamente iria se confirmar no censo realizado pelo Conde da Ponte, em 1807, com 51 mil para a Capital, compondo-se a população em 28% de brancos e 72% de pretos e pardos. Desses últimos sairia a esmagadora maioria dos participantes da planejada sedição, formada por escravos, artesãos, soldados e alforriados, mas também, embora poucos, por profissionais qualificados e religiosos, como o Padre Agostinho Gomes, que municiava com livros de sua biblioteca o ideário dos descontentes com o statu quo da Colônia então identificados com os princípios dos revolucionários franceses de 1789.
O essencial desses princípios reflete-se no poema revolucionário intitulado "Décimas sobre a Igualdade e Liberdade", de criação atribuída a Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque e, também, a Francisco Moniz Barreto, cuja existência o conjurado Manuel Faustino dos Santos Lira confirmou, em depoimento ao Juiz do Feito, repetindo oralmente o que decorara. É este que agora leio, em versão crítica de ortografia atualizada.
DÉCIMAS SOBRE A LIBERDADE E IGUALDADE
Letra
Igualdade e Liberdade
No Sacrário da Razão
Ao lado da sã Justiça
Preenchem meu coração.
Décimas
Se a causa motriz dos entes
Tem as mesmas sensações
Mesmos órgãos, e precisões,
Dados a todos os viventes,
Se a qualquer suficientes
Meios da necessidade
Remir com equidade;
Logo são imperecíveis
E de Deus Leis infalíveis,
Igualdade e Liberdade.
Se este dogma for seguido,
E de todos respeitado,
Fará bem aventurado
Ao povo rude, e polido,
E assim que florescido
Tem da América a Nação
Assim flutue o Pendão
Dos franceses que a imitaram
Depois que afoitas entraram
No Sacrário da Razão.
Estes povos venturosos
Levantando soltos os braços
Desfeitos em mil pedaços
Feros grilhões vergonhosos,
Juraram viver ditosos,
Isentos da vil cobiça,
Da impostura, e da preguiça,
Respeitando os seus Direitos,
Alegres, e satisfeitos,
Ao lado da sã Justiça.
Quando os olhos dos Baianos
Estes quadros divisarem,
E longe de si lançarem
Mil despóticos Tiranos
Quão felizes, e soberanos,
Nas suas terras serão!
Oh! Que doce comoção
Experimentam estas venturas,
Só elas, bem que futuras,
Preenchem o meu coração.
Na minha análise do movimento, baseada em fontes primárias e secundárias, interessaram-me fundamentalmente as relações de comunicação que permitiram, seja no nível interpessoal, pela via oral, com predominância da conversa e do recado, seja no da comunicação manuscrita, com cartas, bilhetes e avisos, atuando em dois planos: o da formação da consciência política e revolucionária e o da preparação para o levante. E pude observar que todo o processo, toda a engrenagem conspiratória, claramente se consumira em atos de comunicação, havendo, no entanto, um momento de evolução nessas relações, determinante para a frustração e o fim trágico do movimento.
Além de mensagens por via oral ou escrita, os conjurados de
1798 estabeleceram formas de comunicação por sinais convencionais, com
estruturas simbólicas que permitiam identificarem-se e comunicarem filiação ao
movimento de revolta, protegidos por linguagem especial, tanto sonora quanto
visual, com garantia de sigilo apoiada em simbologias próprias.
Luís Henrique Dias Tavares registra que os conspiradores
“conversavam, trocavam livros, organizavam banquetes pela liberdade” (...) “e
se reconheciam por um búzio, uma espécie de distintivo ou senha”. Mas é o
historiador Braz do Amaral quem mais especificamente se refere a tais
comportamentos coletivos, em suas memórias históricas e políticas da Província
da Bahia.
“Haviam os conjurados combinado reconhecerem-se por certos distintivos
entre os quais se sabe o que consistia em uma argolinha numa das orelhas,
barba crescida até o meio do queixo, um búzio de Angola na cadeia do relógio,
conhecendo-se assim uns aos outros os franceses, ou mais propriamente, os
partidários das ideias novas. Costumavam empregar palavras especiais, em lugar
das comumente usadas para designar certas coisas, sendo uma delas entes, em vez
de homens, dietas, em vez de assembleias, compativelmente, em vez de
compatibilidade etc., o que denota tendência para uma linguagem convencional, o
que já se tinha visto na revolução francesa”.
Deveu-se ao uso de um búzio de Angola, às vezes até preso na
lapela, como uma das formas de identificação de conjurados, no trânsito diário
por pontos de afluência pública, a opção por historiadores de dar ao movimento
a designação de Revolta dos Búzios, a preferida na atualidade, e não Revolução
dos Alfaiates ou Conjuração Baiana. Porém, o mais decisivo estava por vir.
Por meio de técnica mais aperfeiçoada do uso da escrita, os
rebeldes repentinamente conseguiram superar as limitações da comunicação de
círculo privado entre pessoas, evoluindo para um nível mais amplo - o da
comunicação pública, de caráter unilateral e indeterminado, mesmo em
manuscrito. Foi o que aconteceu a partir da madrugada de 12 de agosto de 1798,
ao ser a população surpreendida com uma série de textos manuscritos, em número
de dez, afixados em locais públicos, para onde convergia grande número de
pessoas, tais como portas de igreja, os chamados cantos do peixe, os açougues e
mercados outros, como os de frutas e legumes, cais do porto, portas de
quartéis, tendas de alfaiates e oficinas de artesãos - onde se operava um
cotidiano de forte afluência -, veiculando mensagens de conteúdo basicamente político-ideológico,
em prol de uma reforma social, embora expresso de forma genérica. Essa forma de
difusão encontrada pelos conspiradores levou Braz do Amaral a afirmar que “a
sua qualidade de comunicação formada no seio do povo indica como a propaganda das
ideias ia ganhando terreno em todas as camadas sociais”. Representava
inegavelmente um claro avanço, com a comunicação almejando um grau mais amplo
de audiência.
Com base em depoimento do condenado Luiz Gonzaga das
Virgens, apontado como autor da escrita dos boletins, Braz do Amaral acusa a
ação de imprudência, por ter sido a causa da descoberta da conspiração, desde
que “afixara escritos pelas paredes e pusera as cartas revolucionárias nas
igrejas pensando fazer com isto proveitosa propaganda, para que mais depressa
chegassem ao povo os princípios que professava”.
A partir daí, deflagrada a perseguição, que já vinha sendo cogitada em razão de denúncias levadas ao governador e até à Coroa em Portugal, 49 foram os presos acusados de conspiração, 40 deles distribuídos por ofícios de baixa qualificação ou simplesmente escravos, instalando-se, por consequência, dois processos regidos por dois desembargadores fiéis à Corte: um, Manoel Pinto de Avelar Barbedo, então Ouvidor Geral do Crime, para investigação do que se passou a chamar "boletins sediciosos", espalhados pela cidade, e outro, Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, voltado para a reunião de preparação para o levante, que fora convocada para o então chamado Dique do Desterro, naquele tempo um lugar afastado e ermo.
Aqui reside o ponto crucial, a presença desses boletins sediciosos, que foram, para os revolucionários, como digo no livro, “o seu jornal, seu instrumento de divulgação de ideias e definições para um público mais amplo, que extrapolava o circuito da conspiração até aquele momento”.
Tendo em vista esse aspecto, sem fazer praça de originalidade, tomei os dez boletins sediciosos que se espalharam pela cidade como a mais expressiva e inovadora forma de comunicação indireta utilizada pelos participantes da conjuração, desempenhando, para a época, o legítimo papel de jornal manuscrito, por meio do qual os conjurados difundiram as suas ideias e projetos de reforma social, com sublevação da ordem constituída, para um público indeterminado - chamado por eles de Povo Bahiense -, com características de comunicação pública, unilateral e indeterminada, como seriam pouco depois - no Brasil e na Bahia - os jornais impressos, até neles repetindo slogans, seja com vibração ética, “Ó vós Homens Cidadãos”, ou emotiva sugestão lírica, “a Liberdade é a doçura da vida”.
Começando, primeiro, pela Gazeta do Rio de Janeiro, autorizada por carta régia de Dom João VI, dez anos depois, em 1808, a prática do jornalismo surgiria na Bahia, em 1811, com o pioneiro Idade d´Ouro do Brazil, publicação quinzenária de linha claramente submissa aos ditames do poder colonial, embora trouxesse inscritos em seu cabeçalho, com presumível toque de ironia, estes dois versos do poeta quinhentista português, Sá de Miranda;
"Falai em tudo verdades
A quem em tudo as deveis."
Só que, no Brasil-Colônia, as verdades proclamadas e aparentemente aceitas eram as do regime absolutista colonizador.
Motivos de uma das devassas que apuraram a conspiração,
esses dez boletins sediciosos visavam, em essência, alcançar um público, uma
coletividade de pessoas, em apoio do movimento. Dirigidos ao Povo Bahiense,
cinco eram encabeçados como Aviso, um como Nota e quatro como Prelo, palavra
que sintomaticamente fazia ressoar a técnica de impressão inaugurada por
Gutenberg, que deu origem a toda a uma consagrada cultura editorial e gráfica
no Ocidente. O primeiro deles traduzia-se numa entusiástica injeção de
alento, ao dirigir-se a seu pretendido público: “Animai-vos Povo Bahiense que
está para chegar o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos
seremos iguais”.
Escolhi para ler dois desses boletins escritos na versão crítica de ortografia atualizada, um intitulado Aviso ao Povo Bahiense, o outro, Prelo.
Aviso ao Povo Bahiense
Ó vós Homens Cidadãos, ó vós Povos curvados e abandonados pelo Rei, pelos seus ministros.
Ó vós Povos que estais para serdes Livres, e para gozardes dos bons efeitos da Liberdade; Ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Indigno coroado, esse mesmo Rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.
Homens, o tempo é chegado para a vossa Ressurreição, sim para ressuscitardes do abismo da escravidão, para levantardes a Sagrada Bandeira da Liberdade.
A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, finalmente a liberdade é o repouso, e bem-aventurança do mundo.
A França está cada vez mais exaltada, a Alemanha já lhe dobrou o joelho, Castela só aspira a sua aliança, Roma já vive anexa, o Pontífice já está abandonado, e desterrado; o rei da Prússia está preso pelo seu próprio povo: as nações do mundo todas têm seus olhos fixos na França, a liberdade é agradável para vós defenderdes a vossa Liberdade, o dia da nossa revolução, da nossa Liberdade e da nossa felicidade está para chegar, animai-vos que sereis felizes para sempre.
Prelo
O Povo Bahiense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita nesta Cidade esse seu termo a sua revolução; portanto manda que seja punido com pena de morte natural para sempre todo aquele e qualquer que no púlpito, confessionário, exortação, conversação; por qualquer modo, forma e maneira se atreva a persuadir aos ignorantes, e fanáticos com o que for contra a liberdade, igualdade e fraternidade do Povo; outrossim, manda o Povo que seja reputado Concidadão aquele Padre que trabalhar para o fim da Liberdade Popular.
Quer que cada um soldado tenha de soldo dois tostões cada dia de soldo.
Os Deputados da Liberdade frequentarão todos os atos da igreja para que seja tomado inteiro conhecimento dos delinquentes: assim seja entendido aliás...
O Povo
Entes da Liberdade
Na verdade, esses boletins constituíram-se no mais vigoroso
instrumento de divulgação dos revolucionários de 1798, como nítida compensação
à inexistência de meios impressos. O professor Luiz Henrique Dias Tavares crava
justamente neste ponto.
“Na época não existia imprensa no Brasil. A porta da colônia
estava fechada a Gutemberg; Portugal, absolutista e clerical, proibia a menor
publicação, a existência mesmo de um simples prelo. Por isso, a publicidade do
movimento tinha de se fazer com boletins manuscritos - e tinha de se fazer,
inclusive, porque os revolucionários estavam certos das adesões e apoios de
homens de destaque, como eram alguns dos Cavalheiros da Luz”. (Espécie de clube
maçônico que se supõe fundado em 1794).
Por isso é que, como sustentei, esses chamados boletins
sediciosos, como classificados pelo poder colonial e sua Justiça, que os
revoltosos espalharam por locais de afluência pública na Bahia de 1798, embora
manuscritos, devem ser reconhecidos, 220 anos depois, senão como ato legítimo
de imprensa, em face das precariedades técnicas da época, mas como dela
alvissareiro embrião e prova coletiva de vontade redentora e modernizadora,
para o Brasil, ainda injustamente desconhecida. Como reforço, basta-me mais
esta iluminada conclusão do historiador Luís Henrique: “Sem ter, assim, grandes
episódios, sem ter, assim, chegado a eclodir a revolução, é pelo seu corpo de
ideias que o movimento baiano de 1798 alteia a sua importância em nossa
História”.
Não poderia encerrar essas palavras sem uma referência
especial aos atos de enforcamento e esquartejamento dos quatro condenados, na
Praça da Piedade, por sinal, pena hedionda semelhante à imposta, somente sete
anos antes, a Tiradentes, no Rio de Janeiro, por ordem da rainha D. Maria I,
chamada a Louca, e mais ainda, à de passados 173 anos, no Largo do Pelourinho,
em imposta aos condenados da infeliz ocupação holandesa, em 1625, nesta própria
Cidade da Bahia, todas em frente a igrejas ou próximas delas, a que dediquei um
poema de recorte dramático, inspirado em relato do alemão J. G. Aldenburgk
(1961), que consta de meu livro Poesia Reunida e Inédito, p. 226, de 2011, que
pode muito bem, guardadas as proporções de época e motivações, ajustar-se ao
cenário tétrico da tragédia punitiva de 8 de novembro de 1799, que agora leio.
ODORES, Ó DORES
Fastígio de sinistra geometria,
ainda estão lá os patíbulos severos,
fadados a povoar os ares fétidos
como o odor que supura de sentenças
tão comuns aos exércitos que vencem
e perpetuam tenebrosos códigos.
Há vento e frio. Há medo. Corpos pendem,
vários, em brancos hábitos de frade,
para que se compraza um deus distante
da sorte que os levou à perdição.
Não é o mesmo que ao capitão Francisco
e ao pelotão de pretos valorosos
reserva o mesmo deus no seu julgado:
logo após pronunciar-se o cadafalso,
no pretório repleto de olhos ávidos,
seguem-se os ritos de esquartejamento,
os pedaços saudando os ares pálidos,
estrepados em postes o bastante
como exemplo tão vivo quanto bárbaro,
que se agrupará ao tempo sucessivo
e aos homens restará como relíquia
de formas primitivas de viver.
Tremor de peito e lua: deserta praça,
onde solene impera o cadafalso –
e sua sombra. Sentinelas dormem,
recolhidos também os vencedores,
armas ensarilhadas, chão lavado.
Cães esquecem o balouçar dos corpos
e vigiam a irresistível dádiva
que deriva dos postes punitivos.
Na luz vaga da noite, sobre pedras,
onde reflexos de recente chuva
lampejam, a vasta sombra do templo
alcovita a outra unânime da morte.
Carpinteiros da náusea em cada canto,
redatores de acórdãos para corvos,
se postam nas esquinas, provedores
árduos de matadouros e carniças,
nas primícias das tardes e das noites,
afeitos ao perfume dos morgados,
enquanto o odor trafega pela aurora
e invade casas, palacetes, adros,
as preces da manhã molhada em sangue
da face retalhada do Evangelho.
Muito obrigado.
* * *
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