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domingo, 19 de agosto de 2018

A ESTRADA DE FERRO – Helena Borborema

ITABUNA, TERRA AMADA!
A Estrada de Ferro


             Às 13 horas e 45 minutos em ponto, os moradores do centro da cidade ouviam, impreterivelmente, o apito do trem da Companhia Estrada de Ferro Ilhéus a Conquista. Na realidade essa ferrovia nunca chegou ao Sudeste da Bahia, mas o nome estava lá, na estação: Ilhéus a Conquista, embora terminasse em Itabuna, em meio do caminho. No primeiro apito, como numa compulsão coletiva, os senhores da cidade tiravam os seus relógios das algibeiras para conferir. O apito, além de anunciar a partida, alertava a cidade  de que era chegada a hora de retornar à lida. Os colégios começavam as suas aulas, o comércio abria as suas portas, a cidade como que acordava de vez da modorra do meio-dia. A hora era exata, infalivelmente. A locomotiva Ilhéus e Conquista parecia até querer competir com o Big-Ben em pontualidade. Às duas horas em ponto, era a partida anunciada pelo segundo apito.

            Antes da partida, o movimento era bastante grande na estação ferroviária. Gente que se abraçava, uns chorosos, outros alegres, na despedida. Todos tinham alguma coisa para falar. Sobre o alto passeio acumulavam-se malas, pacotes, caixas enormes, cestos, à espera do embarque. Havia vagões para passageiros e vagões para malas, cargas e mercadorias. Na casa da estação, pela janela de uma das salas, seu Leocádio, o chefe, fiscalizava tudo com atenção, acompanhado por outros funcionários. Postado junto a um dos vagões, seu Ferreira, de uniforme cáqui com botões dourados, de quepe, na sua costumeira cortesia, recebia e picotava os bilhetes de embarque. Aí embarcavam homens de negócio que tinham o que tratar no comércio de Ilhéus, moradores de lugarejos próximos da linha férrea que vinham a Itabuna fazer compras, fazendeiros que tinham suas roças de cacau em meio do caminho, advogados que tinham causas a tratar no Fórum de Ilhéus, pessoas que se destinavam ao embarque de navio no porto de Ilhéus com destino, a Salvador, como políticos e pessoas outras que se dirigiam à Capital a passeio. Todos se cumprimentavam, todos se conheciam. Não havia medo nem desconfiança, todos se respeitavam.

            No alvoroço da partida, no meio do burburinho de vozes, sobrepunha-se de repente um ranger de ferro e o ruído forte de uma máquina em movimento. Ouvia-se o apito estridente, e a grande máquina começava a se preparar para a partida. Vagarosamente a princípio, rangendo sobre os trilhos, expandindo grande quentura, fumegando, ela deixava a estação cantando  monótona o seu velho estribilho: Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! E lá ia ela chispando fagulhas, lançando fumaça no ar, barulhenta, a despertar  alegria por onde passava. Pouco a pouco a estação ia ficando vazia, silenciosa, onde eram ouvidas apenas as vozes dos funcionários e de alguns carregadores que por ali sempre ficavam postados, como Prego, negro alto, forte, educado e humilde; Padre, negro forte, caladão; Abacaxi, de cor parda, forte, roliço, meio baixote e prestativo; Baratinha, branco, corado, baixo, com uma ferida fétida na perna, tomador de pinga. Esses eram os carregadores mais conhecidos e, por isso mesmo, os mais solicitados. Todos,  homens humildes, porém honestos e respeitadores.

            Deixando a estação, que ficava no local onde hoje se ergue o prédio da antiga Prefeitura e atual Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC, em frente ao canal, transpondo um pontilhão mais adiante, a grande máquina passava pela Rua da Linha, hoje Avenida Ilhéus, no Pontalzinho, onde era saudada pela criançada que, de suas casas, sobre altos barrancos laterais da estrada de ferro, descia correndo para dar adeus aos passageiros que, de suas janelas, respondiam alegremente. Passava pelo arruado da Caixa d’Água para mais adiante entrar na zona rural, quando apareciam,  aqui q acolá, casas grandes e confortáveis das fazendas de cacau.

            Uma parada no povoado de Mutuns, e o trem continuava sua marcha, apitando para responder às saudações dos moradores das fazendas, sempre cantando o refrão: Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não!... E lá se ia ele em direção aos povoados de Rio do Braço e Água Branca. Nesses lugarejos, uma parada suficiente para descer e receber passageiros. Um ramal da estrada de ferro se estendia para Água Preta, hoje Uruçuca, onde havia uma estação de passageiros, indo até Itapira, atual Ubaitaba. A estação de Água Branca era o ponto alvo da viagem para a criançada que ia nos vagões para Ilhéus. Na parada, os gritos dos moleques vendedores de guloseimas soavam como uma tentação:

            - Olha o amendoim torrado!

            - Olha o pé-de-moleque e o beiju de Água Branca!

            - Castanhas! Quem quer castanhas?

            Água de coco! Amendoim cozido!

            - Bolinhos de arroz e de milho! Quem quer?

            - Cajus doces!

            O trem parava e grande excitação tomava conta da meninada. Era uma algazarra de compra e venda. Depois da parada, a locomotiva retomava a sua marcha, só que reabastecida. Tendo pela frente uma grande reta, ela parecia agora mais rápida. Resfolegante, sacudia-se sobre os trilhos, alegre, chiando,  e com um novo estribilho repetia: Vou com Deus, vou com o diabo! Vou com Deus, vou com o diabo!...

            Com o diabo, não; com Deus, sim, porque nunca descarrilou, nunca matou ninguém, nunca despencou numa ribanceira, e assim, despertando alegria por onde passava, saudada pelas casas lá longe, anunciando a sua passagem com o apito, corria se sacodindo sobre os trilhos, atravessando áreas de baixa vegetação. De repente, a paisagem para os seus ocupantes ia mudando, terrenos cobertos de areia alva e fina apareciam, cajueiros aqui e acolá; adiante, zonas de mangues podiam ser vistas, enfim, uma brisa gostosa vinda do mar anunciava a proximidade  da cidade de Ilhéus. Os passageiros saindo da modorra conversavam mais animados, as crianças se alvoroçavam com aquela mudança de ares, e assim, na alegre expectativa, ia a locomotiva se aproximando cada vez mais do seu destino: a estação de Ilhéus. Novo apito, mais fagulhas entrando pelas janelas como minúsculas estrelas cadentes, e seu Ferreira, que acompanhava a viagem, sempre solícito, passando de um vagão para outro fechando janelas, cuidava para que as faíscas não caíssem na roupa e na pele dos passageiros. Começavam os preparativos para o desembarque. A locomotiva da Estrada de Ferro Ilhéus a Conquista nunca chegou a ir tão longe, mas cumpria galhardamente a sua função de unir dois grandes municípios, integrando sua economia e sua gente.

            O progresso é quase sempre um demolidor e,  quando mal compreendido, muitas coisas boas, tanto valores materiais como morais, são abatidas, imoladas em seu nome. E em nome do progresso a velha Estrada de Ferro Ilhéus a Conquista foi desativada, depois completamente destruída. Seus trilhos e dormentes foram arrancados, seus vagões sucateados, destruídos pela ação do tempo, sem a piedade dos homens que da sua existência nada guardaram, nem como lembrança que se preserva de um ente querido morto. A sua lentidão tinha de ceder lugar à velocidade dos caminhões, ônibus e automóveis. A sua segurança, em nome da evolução, tinha de ser substituída pelos riscos da alta velocidade. A alegria que tanto deu aos seus usuários hoje faz parte de um passado que ainda é lembrado como grata recordação por aqueles que tiveram a dita de usufruir das gostosas viagens sobre os seus trilhos, embalados pelo acalento da voz de suas máquinas no Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão...

(RETALHOS)
Helena Borborema
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Helena Borborema - Nasceu em Itabuna. Professora de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do Município. (A autora)
“Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra’” (Cyro de Mattos)

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