Às vezes me pergunto: que cidade
Essa em que vivo, lívido e noturno,
Em becos sem saída que a outros becos
Dão, em jogos de múltiplos espelhos,
Como sôbolos rios dão mar?
Às vezes me demando: onde Ariadne
O teu fio de cabelo como teia
Numa esquina do tempo e da memória
Conduzindo meu passo em labirintos
Onde tocaiam terríveis minotauros?
Cidadela de pedras e de muros
Onde o musgo se agarra como náufrago
Em silêncio de estátuas degoladas
Indiferentes ao grito das buzinas
Que entorpeceram o cântico dos pássaros.
Cidadela por onde, inda menino,
Caminhei tuas ruas solitárias,
Alamedas de plátanos alados
Em céu de brigadeiro, onde voávamos,
Em décadas de andá-las e perder-me
No dédalo que leva ao
meu destino,
Até chegar, barbudo viandante,
No coração do teu mercado persa
De suor e de sangue derramados.
Cidadela irreal e dividida
Pela fúria dos teus risos ferozes
Pelos silêncios tão expectantes
Que às vezes se revelam em tuas vozes
Dividida na tua geografia
Por um rio coberto de feridas
Que, na seca, revela-se esqueleto
De pedras e de úlceras abertas
E, na cheia, cobre-se no mênstruo
Das águas barrentas e selvagens
Sangrando, fêmea, em direção ao mar.
Estás, hoje, ferida, sim, de morte,
Por um grito de dor que se contorce,
Tuas raízes atiram-se na brisa,
Mas não encontram onde se agarrar,
Frutos de ouro inclinam-se na sombra
Feridos por estranhos personagens
Que apunhalaram o céu, seres do ar.
Agora em mim opera-se uma dúvida
Na colheita das tuas oferendas,
Indiferente estou aos teus relâmpagos
Azuis e ao trovão dos teus motores,
Pois os passos da morte já perseguem
Os calcanhares da vida, o tempo inteiro,
Sol a sol, mês a mês, ano a ano,
Como ao vento de abril folhas de outono
Caem, leves, dos velhos cacaueiros.
* * *
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