O Desfecho
Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a água em cima os olhos espantados.
Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
Machado de Assis
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Machado de Assis
Diálogo Epistolar entre José de Alencar e Machado de Assis
Carta de José de Alencar
Tijuca [Rio de Janeiro], 18 de fevereiro de 1868.
Ilmo Sr. Machado de Assis.
— Recebi ontem a visita de um
poeta.
— O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o
Brasil. Bem entendido, falo do Brasil que sente; do coração e não do resto.
— O
Sr. Castro Alves é hóspede desta grande cidade, alguns dias apenas. Vai a S.
Paulo concluir o curso que encetou em Olinda.
— Nasceu na Bahia, a pátria de
tão belos talentos; a Atenas brasileira que não cansa de produzir estadistas,
oradores, poetas e guerreiros.
— Podia acrescentar que é filho de um médico
ilustre. Mas para quê? A genealogia dos poetas começa com o seu primeiro poema.
E que pergaminhos valem estes selados por Deus?
— O Sr. Castro Alves trouxe-me
uma carta do Dr. Fernandes da Cunha, um dos pontífices da tribuna brasileira.
Digo pontífice, porque nos caracteres dessa têmpera o talento é uma religião, a
palavra um sacerdócio.
— Que júbilo para mim! Receber Cícero que vinha
apresentar Horácio, a eloquência conduzindo pela mão a poesia, uma glória
esplêndida mostrando no horizonte da pátria a irradiação de uma límpida aurora!
— Mas também quanto, nesse instante, deplorei minha pobreza, que não permitia
dar a tão caros hóspedes régio agasalho. Carecia de ser Hugo ou Lamartine, os
poetas-oradores, para preparar esse banquete da inteligência.
— Se, ao menos,
tivesse nesse momento junto de mim a plêiade rica de jovens escritores, à qual
pertencem o senhor, o Dr. Pinheiro Guimarães, Bocaiúva, Múzio, Joaquim Serra,
Varela, Rozendo Moniz, e tantos outros!...
— Entre estes, por que não lembrarei
o nome de Leonel de Alencar, a quem o destino fez ave de arribação na terra
natal? Em literatura não há suspeições: todos nós, que nascemos em seu regaço,
não somos da mesma família?
— Mas a todos o vento da contrariedade os tem
desfolhado por aí, como flores de uma breve primavera. Um fez da pena espada
para defender a pátria. Alguns têm as asas crestadas pela indiferença; outros,
como douradas borboletas, presas da teia d'aranha, se debatem contra a
realidade de uma profissão que lhes tolhe os vôos.
— Felizmente estava eu na
Tijuca. O senhor conhece esta montanha encantadora. A natureza a colocou a duas
léguas da Corte, como um ninho para as almas cansadas de pousar no chão.
— Aqui
tudo é puro e são. O corpo banha-se em águas cristalinas, como o espírito na
limpidez deste céu azul.
— Respira-se à larga, não somente os ares finos que
vigoram o sopro da vida, porém aquele hálito celeste do Criador, que bafejou o
mundo recém-nascido. Só nos ermos em que não caíram ainda as fezes da
civilização, a terra conserva essa divindade do berço.
— Elevando-se a estas
eminências, o homem aproxima-se de Deus. A Tijuca é um escabelo entre o pântano
e a nuvem, entre a terra e o céu. O coração que sobe por este genuflexório,
para se prostrar ao pés do Onipotente, conta três degraus; em cada um deles,
uma contrição.
— No alto da Boa Vista, quando se descortina longe, serpejando
pela várzea, a grande cidade réptil, onde as paixões pululam, a alma que se
havia atrofiado no foco do materialismo, sente-se homem. Embaixo era uma
ambição; em cima contemplação.
— Transposto esse primeiro estádio, além, para
as bandas da Gávea, há um lugar que chamam Vista Chinesa. Este nome lembra-lhe
naturalmente um sonho oriental, pintado em papel de arroz. É uma tela sublime,
uma decoração magnífica deste inimitável cenário fluminense. Dir-se-ia que Deus
entregou a algum de seus arcanjos o pincel de Apeles, e mandou-lhe encher aquele
pano de horizonte. Então o homem sente-se religioso.
— Finalmente, chega-se ao
Pico da Tijuca, o ponto culminante da serra, que fica do lado oposto. Daí os
olhos deslumbrados vêem a terra como uma vasta ilha a submergir-se entre dois
oceanos, o oceano do mar e o oceano do éter. Parece que estes dois infinitos, o
abismo e o céu, abrem-se para absorver um ao outro. E no meio dessas
imensidades, um átomo, mas um átomo-rei, de tanta magnitude. Aí o ímpio é
cristão e adora o Deus verdadeiro.
— Quando a alma desce destas alturas e volve
ao pá da civilização, leva consigo uns pensamentos sublimes, que do mais baixo
remontam à sua nascença, pela mesma lei que faz subir ao nível primitivo a água
derivada do topo da terra.
— Nestas paragens não podia meu hóspede sofrer jejum
de poesia. Recebi-o dignamente. Disse à natureza que pusesse a mesa, e enchesse
as ânforas das cascatas de linfa mais deliciosa que o falerno do velho Horácio.
— A Tijuca esmerou-se na hospitalidade. Ela sabia que o jovem escritor vinha do
Norte, onde a natureza tropical se espaneja em lagos de luz diáfana, e,
orvalhada de esplendores, abandona-se lasciva como uma odalisca às carícias do
poeta.
— Então a natureza fluminense, que também, quando quer, tem daquelas
impudências celestes, fez-se casta e vendou-se com as alvas roupagens de
nuvens. A chuva a borrifou de aljôfares; as névoas resvalavam pelas encostas
como as fímbrias da branca túnica roçagante de uma virgem cristã.
— Foi assim,
a sorrir entre os nítidos véus, com um recato de donzela, que a Tijuca recebeu
nosso poeta.
— O Sr. Castro Alves lembrava-se, como o senhor e alguns poucos
amigos, de uma antiguidade de minha vida; que eu outrora escrevera para o
teatro. Avaliando sobre medida minha experiência neste ramo difícil da
literatura, desejou ler-me um drama, primícia de seu talento.
— Essa produção
já passou pelas provas públicas em cena competente para julgá-la. A Bahia
aplaudiu com júbilos de mãe a ascensão da nova estrela de seu firmamento.
Depois de tão brilhante manifestação, duvidar de si, não é modéstia unicamente,
é respeito à santidade de sua missão de poeta.
— Gonzaga é o título do drama
que lemos em breves horas. O assunto, colhido na tentativa revolucionária de
Minas, grande manancial de poesia histórica ainda tão pouco explorado, foi
enriquecido pelo autor com episódios de vivo interesse. O Sr. Castro Alves é um
discípulo de Vítor Hugo, na arquitetura do drama, como no colorido da ideia. O
poema pertence à mesma escola do ideal; o estilo tem os mesmos toques
brilhantes.
— Imitar Vítor Hugo só é dado às inteligências de primor. O Ticiano
da literatura possui uma palheta que em mão de colorista medíocre mal produz
borrões. Os moldes ousados de sua frase são como os de Benvenuto Cellini; se o
metal não for de superior afinação, em vez de estátuas saem pastichos. — Não
obstante, sob essa imitação de um modelo sublime desponta no drama a inspiração
original, que mais tarde há de formar a individualidade literária do autor.
Palpita em sua obra o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da
pátria, que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos. — Não se admire de
assimilar eu o cidadão e o poeta, duas entidades que no espírito de muitos
andam inteiramente desencontradas. O cidadão é o poeta do direito e da justiça;
o poeta é o cidadão do belo e da arte.
— Há no drama Gonzaga exuberância de
poesia. Mas deste defeito a culpa não foi do escritor; foi da idade. Que poeta
aos vinte anos não tem essa prodigalidade soberba de sua imaginação, que se
derrama sobre a natureza e a inunda?
— A mocidade é uma sublime impaciência.
Diante dela a vida se dilata, e parece-lhe que não tem para vivê-la mais que um
instante. Põe os lábios na taça da vida, cheia a transbordar de amor, de
poesia, de glória, e quisera estancá-la de um sorvo. — A sobriedade vem com os
anos; é virtude do talento viril. Mais entrado na vida, o homem aprende a
poupar sua alma. Um dia, quando o Sr. Castro Alves reler o Gonzaga, estou
convencido que ele há de achar um drama esboçado, em cada personagem desse
drama. Olhos severos talvez enxerguem na obra pequenos senões.
— Maria, achando
em si forças para enganar o governador em um transe de suprema angústia,
parecerá a alguns menos amante, menos mulher, do que devera. A ação, dirigida
uma ou outra vez pelo acidente material, antes do que pela revolução íntima do
coração, não terá na opinião dos realistas, a naturalidade moderna.
— Mas são
esses defeitos da obra, ou do espírito em que ela se reflete? Muitas vezes já
não surpreendeu seu pensamento a fazer a crítica de uma flor, de uma estrela,
de uma aurora? Se o deixasse, creia que ele se lançaria a corrigir o trabalho
do supremo artista. Não somos homens debalde: Deus nos deu uma alma, uma
individualidade.
— Depois da leitura do seu drama, o Sr. Castro Alves
recitou-me algumas poesias. "A Cascata de Paulo Afonso", "As
Duas Ilhas" e "A Visão dos Mortos" não cedem às excelências da
língua portuguesa neste gênero. Ouça-as o senhor, que sabe o segredo desse
metro natural, dessa rima suave e opulenta.
— Nesta capital da Civilização brasileira,
que o é também de nossa indiferença, pouco apreço tem o verdadeiro mérito
quando se apresenta modestamente. Contudo, deixar que passasse por aqui
ignorado e despercebido o jovem poeta baiano, fora mais que uma descortesia.
Não lhe parece?
— Já um poeta o saudou pela imprensa; porém, não basta a
saudação; é preciso abrir-lhe o teatro, o jornalismo, a sociedade, para que a
flor desse talento cheio de seiva se expanda nas auras da publicidade.
—
Lembrei-me do senhor. Em nenhum concorrem os mesmos títulos. Para apresentar ao
público fluminense o poeta baiano, é necessário não só ter foro de cidade na
imprensa da Corte, como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que ainda
espera um cantor.
— Seu melhor título, porém, é outro. O senhor foi o único de
nossos modernos escritores, que se dedicou sinceramente à cultura dessa difícil
ciência que se chama crítica. Uma porção de talento que recebeu da natureza, em
vez de aproveitá-lo em criações próprias, teve a abnegação de aplicá-lo a
formar o gosto e desenvolver a literatura pátria.
— Do senhor, pois, do
primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se
revelou com tanto vigor.
— Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos
ínvios caminhos por onde se vai à decepção, à indiferença e finalmente à
glória, que são os três círculos máximos da divina comédia do talento.
publicada no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 1868
publicada no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 1868
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Machado de Assis
Resposta de Machado de Assis
Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1868.
Exmo. Sr. — É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor
e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exa, com uma carta que vale um
diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves
não podia ter mais feliz introito na vida literária. Abre os olhos em pleno
Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre. — Mas se isto
me entusiasma, outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança,
que é ao mesmo tempo um motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão
inútil fera dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de
V. Exa. mais do que uma animação generosa.
— A tarefa da crítica precisa destes
parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas
que impõe, que a palavra eloquente de um chefe é muitas vezes necessária para
reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido.
— Confesso francamente,
que, encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela ideia de contribuir
com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se
perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre.
Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se
impunha ao espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem
consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia
estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e
frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como V. Exa, sabem
exprimir sentimentos e ideias na língua que nos legaram os mestres clássicos,
nem esses puderam opor um dique à torrente invasora. Se a sabedoria popular não
mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se
antolha remédio ao mal.
— Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos
mais robustos, outro risco havia: e a este já não era a inteligência que se
expunha, era o caráter. Compreende V. Ex.a que, onde a crítica não é
instituição formada e assentada, a análise literária tem de lutar contra esse
entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do
mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se afetos.
Desfiguram-se os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da
imparcialidade: chama-se antipatia o que é consciência. Fosse esse, porém, o
único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no ânimo de quem põe
acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da sociedade, porque a boa fama
das musas o é também. — Cansados de ouvir chamar bela à poesia, os novos
atenienses resolveram bani-la da república.
— O elemento poético é hoje um
tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já
estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos
sentidos veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta
às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso para limpar
este presepe de Augias?
— Eu bem sei que no Brasil, como fora dele, severos
espíritos protestam com o trabalho e a lição contra esse estado de coisas: tal
é, porém, a feição geral da situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre
há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha
parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel, contudo.
entendia e entendo — adotando a bela definição do poeta que V. Exa dá em sua
carta — que há para o cidadão da arte e do belo deveres imprescritíveis, e que,
quando uma tendência do espírito o impele para certa ordem de atividade, é sua
obrigação prestar esse serviço às letras.
— Em todo o caso não tive imitadores.
Tive um antecessor ilustre, apto para este árduo mister, erudito e profundo,
que teria prosseguido no caminho das suas estreias, se a imaginação possante e
vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois nos deu. Será preciso
acrescentar que aludo a V. Ex.a?
— Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante
que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever, cuja responsabilidade seria
grande se a própria carta de V. Exa não houvesse aberto ao neófito as portas da
mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta
belezas e descuidos. O principal trabalho está feito.
— Procurei o poeta cujo
nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a
notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus
versos.
— Não tive, como V. Exa, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico
panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa
formosa Tijuca, que V. Exa chama um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu
estava no pântano, em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não
era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham
passado a vara à loucura: estávamos no carnaval.
— No meio desse tumulto
abrimos um oásis de solidão. — Ouvi o Gonzaga e algumas poesias.
— V. Exa já
sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu
a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as
impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta.
— Não podiam ser
melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez,
deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei
um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista — no
dizer, nas ideias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro
Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo,
não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir
o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as
tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços
vigorosos da ode.
— Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta
simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e
método idêntico a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma
esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a
espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da
poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se
que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas ideias com roupas finas e
trabalhadas. O receio de cair em um defeito, não o levará a cair no defeito
contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal,
para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me
mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio
de tantas belezas.
— O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e
reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra,
que me demorava os olhos em cada página do volume.
— O poeta explica o
dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o
período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a
Píndaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e
arroja-se ao espaço livre e azul.
— Esta exuberância que V. Exa com justa razão
atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então
conseguirá separar completamente a língua lírica da língua dramática; e do
muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje.
— Estreando
no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz, o Sr.
Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que
o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do
martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de
uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece do
Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espártacos.
O insucesso fê-los criminosos; a vitória tê-los-ia feito Washingtons.
Condenou-os a justiça legal; reabilita-os a justiça histórica.
— Condensar
estas ideias em uma obra dramática, transportar para a cena a tragédia política
dos Inconfidentes, tal foi o objeto do Sr. Castro Alves, e não se pode esquecer
que, se o intuito era nobre, o cometimento era grave. O talento do poeta
superou a dificuldade; com uma sagacidade que eu admiro em tão verdes anos,
tratou a história e a arte por modo que, nem aquela o pode acusar de infiel,
nem esta de copista. Os que, como V. Exa, conhecem esta aliança, hão de avaliar
esse primeiro merecimento do drama do Sr. Castro Alves.
— A escolha de Gonzaga
para protagonista foi certamente inspirada ao poeta pela circunstância dos seus
legendários amores, de que é história aquela famosa Marília de Dirceu. Mas não
creio que fosse só essa circunstância. Do processo resulta que o cantor de
Marília era tido por chefe da conspiração, em atenção aos seus talentos e
letras. A prudência com que se houve desviou da sua cabeça a pena capital.
Tiradentes, esse era o agitador; serviu à conspiração com uma atividade rara;
era mais um conspirador do dia que da noite. A justiça o escolheu para a forca.
Por tudo isso ficou o seu nome ligado ao da tentativa de Minas.
— Os amores de
Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance,
casavam-se em cena a tradição política e a tradição poética, o coração do homem
e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o
protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e
de patriota; casa no mesmo ideal os seus dois sentimentos. Quando Maria lhe
propõe a fuga, no terceiro ato, o poeta não hesita em repelir esse recurso,
apesar de ser iminente a sua perda. Já então a revolução expira; para as
ambições, se ele as houvesse, a esperança era nenhuma; mas ainda era tempo de
cumprir o dever. Gonzaga preferiu seguir a lição do velho Horácio corneiliano:
entre o coração e o dever a alternativa é dolorosa. Gonzaga satisfaz o dever e
consola o coração. Nem a pátria nem a amante podem lançar-lhe nada em rosto.
—
O Sr. Castro Alves houve-se com a mesma arte em relação aos outros conjurados.
Para avaliar um drama histórico, não se pode deixar de recorrer à história;
suprimir esta condição é expor-se a crítica a não entender o poeta.
— Quem vê o
Tiradentes do drama não reconhece logo aquele conjurado impaciente e ativo,
nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos
no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu caráter com a morte na
forca e a profanação do cadáver? E Cláudio, o doce poeta, não o vemos todo ali,
galhofeiro e generoso, fazendo da conspiração uma festa e da liberdade uma
dama, gamenho no perigo, caminhando para a morte com o riso nos lábios, como
aqueles emigrados do Terror? Não lhe rola já na cabeça a ideia do suicídio, que
praticou mais tarde, quando a expectativa do patíbulo lhe despertou a fibra de
Catão, casando-se com a morte, já que se não podia casar com a liberdade? Não é
aquele o denunciante Silvério, aquele o Alvarenga, aquele o padre Carlos? Em
tudo isso é de louvar a consciência literária do autor. A história nas suas
mãos não foi um pretexto; não quis profanar as figuras do passado, dando-lhes
feições caprichosas. Apenas empregou aquela exageração artística, necessária ao
teatro, onde os caracteres precisam de relevo, onde é mister concentrar em
pequeno espaço todos os traços de uma individualidade, todos os caracteres
essenciais de uma época ou de um acontecimento. — Concordo que a ação parece às
vezes desenvolver-se pelo acidente material. Mas esses raríssimos casos são
compensados pela influência do princípio contrário em toda a peça.
— O vigor
dos caracteres pedia o vigor da ação, ela é vigorosa e interessante em todo o
livro; patética no último ato. Os derradeiros adeuses de Gonzaga e Maria
excitam naturalmente a piedade, e uns belos versos fecham este drama, que pode
conter as incertezas de um talento juvenil, mas que é com certeza uma invejável
estréia.
— Nesta rápida exposição das minhas impressões, vê V. Exa que alguma
coisa me escapou. Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui à figura
do preto Luís. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a ideia da abolição. Luís representa o elemento escravo Contudo o Sr. Castro Alves não
lhe deu exclusivamente a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele
coração os desesperos do amor paterno. Quis tornar mais odiosa a situação do
escravo pela luta entre a natureza e o fato social, entre a lei e o coração.
Luís espera da revolução, antes da liberdade a restituição da filha; é a
primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso,
quando no terceiro ato Luís encontra a filha já cadáver, e prorrompe em
exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode
dominar tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando
nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo: vê o
homem.
— Cumpre mencionar outras situações igualmente belas. Entra nesse número
a cena da prisão dos conjurados no terceiro ato. As cenas entre Maria e o
governador também são dignas de menção, posto que prevalece no espírito o
reparo a que V. Exa aludiu na sua carta. O coração exigira menos valor e
astúcia da parte de Maria; mas, não é verdade que o amor vence as repugnâncias
para vencer os obstáculos? Em todo o caso uma ligeira sombra não empana o
fulgor da figura.
— As cenas amorosas são escritas com paixão: as palavras saem
naturalmente de uma alma para outra, prorrompem de um para outro coração. E que
contraste melancólico não é aquele idílio às portas do desterro, quando já a
justiça está prestes a vir separar os dois amantes! — Dir-se-á que eu só
recomendo belezas e não encontro senões? Já apontei os que cuidei ver. Acho
mais — duas ou três imagens que me não parecem felizes: e uma ou outra locução
suscetível de emenda. Mas que é isto no meio das louçanias da forma? Que as
demasias do estilo, a exuberância das metáforas, o excesso das figuras devem
obter a atenção do autor, é coisa tão segura que eu me limito a mencioná-las:
mas como não aceitar agradecido esta prodigalidade de hoje, que pode ser a
sábia economia de amanhã?
— Resta-me dizer que, pintando nos seus personagens a
exaltação patriótica, o poeta não foi só à lição do fato, misturou talvez com
essa exaltação um pouco do seu próprio sentir. É a homenagem do poeta ao
cidadão. Mas, consorciando os sentimentos pessoais aos dos seus personagens, é
inútil distinguir o caráter diverso dos tempos e das situações. Os sucessos que
em 1822 nos deram uma pátria e uma dinastia, apagaram antipatias históricas que
a arte deve reproduzir quando evoca o passado.
— Tais foram as impressões que
me deixou este drama viril, estudado e meditado, escrito com calor e com alma. A
mão é inexperiente, mas a sagacidade do autor supre a inexperiência. Estudou e
estuda; é um penhor que nos dá. Quando voltar aos arquivos históricos ou
revolver as paixões contemporâneas, estou certo que o fará com a mão na
consciência. Está moço, tem um belo futuro diante de si. Venha desde já
alistar-se nas fileiras dos que devem trabalhar para restaurar o império das
musas.
— O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroará a obra?
É um ponto de interrogação que há de ter surgido no espírito de V. Exa. Contra
estes intuitos, tão santos quanto indispensáveis, eu sei que há um obstáculo, e
V. Exa. o sabe também: é a conspiração da indiferença. Mas a perseverança não
pode vencê-la? Devemos esperar que sim. — Quanto a V. Exa, respirando nos degraus
da nossa Tijuca o hausto puro e vivificante da natureza, vai meditando, sem
dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo.
Deve faze-lo sem temor. Contra a conspiração da indiferença, tem V. Exa um
aliado invencível: é a conspiração da posteridade.
publicada no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 1 de março de 1868
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