O Folhetinista
Uma das plantas europeias que dificilmente se têm aclimatado
entre nós, é o folhetinista.
Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da
incompatibilidade do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade.
Entretanto, eu disse — dificilmente — o que supõe algum caso
de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta exceção, vê já o leitor
que nasceu enfezado, e mesquinho de formas.
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde
vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá se espalhou pelo mundo, ou
pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito
moderno; falo do jornal.
Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de acomodar a
economia vital de sua organização às conveniências das atmosferas locais. Se o
têm conseguido por toda a parte, não é meu fim estudá-lo; cinjo-me ao nosso
círculo apenas.
Mas comecemos por definir a nova entidade literária.
O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro
pseudônimo, o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por consequência do
jornalista. Esta íntima afinidade é que desenha as saliências fisionômicas na
moderna criação.
O folhetinista é a
fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério,
consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como polos,
heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo
animal.
Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade
assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz
séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao
devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital
próprio.
O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na
esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre
todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe
pertence; até mesmo a política.
Assim aquinhoado pode
dizer-se que não há entidade mais feliz neste mundo, exceções feitas. Tem a
sociedade diante de sua pena, o público para lê-lo, os ociosos para admirá-lo,
e a bas-bleus para aplaudi-lo.
Todos o amam, todos o admiram, porque todos têm interesse de
estar de bem com esse arauto amável que levanta nas lojas do jornal a sua aclamação
de hebdomadário.
Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas as
vantagens de sua posição, nem todos os dias são tecidos de ouro para os
folhetinistas. Há-os negros, com fios de bronze; à testa deles está o dia...
adivinhem? O dia de escrever!
Não parece? Pois é verdade puríssima. Passam-se séculos nas
horas que o folhetinista gasta à mesa a
construir a sua obra.
Não é nada, é o cálculo e o dever que vêm pedir da abstração
e da liberdade — um folhetim! Ora, quando há matéria e o espírito está
disposto, a coisa passa-se bem. Mas quando, à falta de assunto se une aquela
morbidez moral, que se pode definir por um amor ao farniente, então é um
suplício...
Um suplício, sim.
Os olhos negros que saboreiam essas páginas coruscantes de
lirismo e de imagens, mal sabem às vezes o que custa escrevê-las.
Para alguns não procede este argumento; porque para alguns
há provimento de matéria, certos livros a explorar, certos colegas a
empobrecer...
Esta espécie é uma aberração do verdadeiro folhetinista; exceções
desmoralizadoras que nodoam as reputações legítimas.
Escritas, porém, as suas tiras de convenção, a primeira hora
depois é consagrada ao prazer de desforrar-se de uma maçada que passou. Naquela
noite é fácil encontrá-lo no primeiro teatro ou baile aparecido.
A túnica de Néssus caiu-lhe dos ombros por sete dias.
Como quase todas as coisas deste mundo o folhetinista
degenera também. Algumas das entidades que possuem essa capa esquecem-se de que
o folhetim é um confeito literário sem horizontes vastos, para fazer dele um
canal de incenso às reputações firmadas, e invectivas às vocações em flor, e
aspirações bem cabidas.
Constituindo assim cardeal-diabo da cúria literária, é
inútil dizer que o bom senso e a razão friamente o condenam e votam ao ostracismo
moral, ausência de aplausos e de apoio.
Não é este o único abuso que se dá. É costume de outros
levantarem o folhetim como a chave de todos os corações, como a foice de todas
as reputações indeléveis.
E conseguem...
Na apreciação do folhetinista pelo lado local temo talvez
cair em desagrado negando a afirmativa. Confesso apenas exceções. Em geral o
folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se a um estilo estranho, e
esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard e café Tortoni, de que está
sobre um mac-adam lamacento e com uma grossa tenda lírica no meio de um
deserto.
Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas
de lá; é inútil dizer que degeneraram no físico como no moral.
Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções, tem
tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na
verdade difícil.
Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele podia
bem tomar mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal à
independência do espírito nacional, tão preso a essas imitações, a esses
arremedos, a esse suicídio de originalidade e iniciativa.
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Aquarelas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro, 11 e
18/09 e 9, 16 e 30/10/1859.
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