Afronta e indignação
Estamos perplexos, chocados, estarrecidos diante de tanta
desfaçatez. Um acinte, uma afronta ao cidadão. Faltam palavras para descrever como
nos sentimos.
Indignação, raiva, vergonha, desalento, tristeza, nojo,
descrença. Também faltam palavras para dar conta do nosso estado de espírito.
Não dá para passar por cima dos horrores acumulados. Nem minimizar ou relevar
coisa alguma. Já chega estarmos sendo forçados a mudar de assunto e tirar o
foco de Odebrecht, OAS, Bumlai, Guarujá, Atibaia, e da expectativa do que diria
Palocci, como se tudo isso tivesse deixado de existir de uma hora para outra.
Essa gente está querendo demais.
Estão há um tempão querendo que acreditemos que presidentes
e seus cúmplices são honestos, não sabem de nada — e mesmo com essa
incapacidade e incompetência, estão aptos a governar. Também seus auxiliares e
apoiadores em todos os níveis. E mais seus opositores e adversários, como se
constata nesse pântano onde estão todos atolados e com cujo fedor nos estão
obrigando a conviver.
Esperam que aceitemos que não há nada de reprovável em que
um presidente receba favores de empresários, com os mais variados pretextos, e
em troca esses “amigos” tenham privilégios especiais.
Esperam que possamos engolir que não há nada condenável em
receber dinheiro, a qualquer pretexto, com cuidados para não declarar nem pagar
imposto. Até em espécie, em malas e mochilas cheias. Ou travestidos de tríplex,
sítios, terrenos, guarda de bens, joias, obras de arte. E ainda querem nos
empurrar goela abaixo a noção de que não faz mal algum obsequiar altas figuras
da República para conseguir se isentar das leis que valem para todos os outros.
Esperam que, quando isso vem à tona subitamente,
aproveitemos para tirar do cargo o bandido da vez, afastar o possível bandido
de amanhã e nos deixemos manipular para lá recolocar o bandido de ontem ou
anteontem, fingindo que a manobra para lhe garantir impunidade é um ato
patriótico para salvar o país.
Esperam distrair a pátria mãe com discursos veementes,
slogans e firulas de todo tipo, para que, mais uma vez, as tenebrosas
transações possam continuar a nos subtrair sob qualquer forma.
Esperam que desviemos o olhar ou fiquemos cegos às variadas
tentativas de criar obstáculos para obstruir a Justiça, atrapalhar
investigações, fazer sangrar a Lava-Jato, desmoralizar o Ministério Público.
Os exemplos vêm a público diante de um país estupefato. Não
dá para esquecer. Já ouvimos as manobras mais escandalosas, na própria voz dos
envolvidos. A começar pela nomeação de Lula por Dilma para a Casa Civil,
publicada em edição especial do Diário Oficial na madrugada, com termo de posse
sem assinatura levado em mãos pelo “Bessias” para ficar como salvo-conduto e
lhe garantir foro privilegiado. Em seguida, veio a revelação captada no áudio
feito pelo filho de Nestor Cerveró — em que Delcídio transmitia a preocupação
de Lula com eventual colaboração e incluía oferta de fuga em jatinho. Ouvimos
ainda, com riqueza de detalhes, as conversas gravadas por Sérgio Machado dando
conta do complô de parlamentares de alto coturno para deter a investigação.
Acompanhamos diferentes tentativas no Congresso para driblar a legislação —
como anistia a caixa 2, ou projetos até eventualmente necessários, mas
inoportunos, contra abuso de autoridade, abrangentes a ponto de pretender
criminalizar juiz que interprete a lei. E chegamos agora às fanfarronices e
confissões do Joesley Safadão, gabando-se de controlar juízes e infiltrar
procurador — ouvidas sem reação pelo presidente da República, da boca de alguém
que o procurara conforme combinado, no porão, na calada da noite, com o cuidado
de não deixar rastros, sob nome falso e sem ser revistado.
Meninos, ouvimos!
Esperam também que a nação, estupefata, faça como eles e se
disponha a ignorar as leis que nos regem. Apostam na escalada de violência e
confronto, como se a depredação fosse um direito democrático irreprimível.
Fala-se em PEC para mudar rapidinho a Constituição e permitir diretas-já sem
levar em conta que, para evitar casuísmo, a Carta Magna impõe, em seu artigo
16: “A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua
promulgação”.
E mais: advogados isentos têm opinado que a Lei 12.850/13,
que possibilita colaborações premiadas, limita sua aplicação no caso de quem
chefie a organização criminosa. Portanto, não admitiria que para pegar os
líderes políticos se passasse uma borracha prévia tão radical em líderes criminosos,
como a que permitiu que os irmãos Batista se mudem incólumes para os EUA, a
gastar o nosso dinheiro, obtido graças a favores especiais do BNDES e outras
fontes públicas. Ainda mais agora, depois de especularem com os efeitos de sua
delação sobre ações e câmbio. Leves e soltos. Fica no ar a irreverente pergunta
de um motorista de táxi carioca, a encarnar com expressividade a reação do
comum dos mortais:
— E no tornozelinho? Nada?
O Globo, 27/05/2017
Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita
em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de
agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia Brasileira
de Letras em 2012 e 2013.
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOs personagens mais sofridos de todo esse drama somos nós o povo brasileiro que trabalhamos com honestidade e pagamos quase a metade daquilo que ganhamos em impostos para fomentar essa ladroeira desvairada. A Torre de Babel se instalou no Brasil de uma forma tão vergonhosa que já nem sabemos mais o que ainda está por vir, e enquanto de um lado, a Lava Jato trabalha incansavelmente contra a criminalidade que envolve a política, de outro os meliantes, sem medo algum continuam a agir na calada da noite, pois parece que para eles o crime tem sim compensado. Mas eu ainda acredito que o Brasil será passado a limpo, seja de que forma for, e não descarto a possibilidade de uma intervenção militar para colocar ordem na casa, contra os desmandos e descalabros desses mafiosos que tentam se manter no poder a qualquer custo.
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