1.º de Junho de 1863
O Jornal de Recife deu-nos duas notícias importantes, com a
diferença de alegrar-nos a primeira
tanto quanto nos contrista a segunda; refiro-me às melhorias de saúde de
Gonçalves Dias e a morte de J. F. Lisboa, verdadeira a última ou não passa de
deplorável engano? É lícito duvidar da exatidão dela, e, sem ofensa a folha
pernambucana, deve-se esperar uma confirmação mais positiva.
Não é que o fato seja impossível; mas o silêncio da imprensa
portuguesa a respeito, silêncio impossível, a ter-se dado o caso, abre lugar à
dúvida. Mau era se a indiferença de um país amigo e irmão fosse a única elegia
que tivesse na morte um homem tão ilustre como o autor do Jornal de Timon.
Pelo que respeita a Gonçalves Dias, a mesma folha se refere
a uma carta do poeta. Os seus sofrimentos não desapareceram de todo, nem deixam
de ser grandes; mas o ilustre poeta está fora de perigo. Escreve de Dresde, e
ia partir para Carlsbad, a fim de tomar banhos minerais. A esta notícia
acrescenta que tem em mãos vários trabalhos literários que pretende mandar
imprimir em Leipzig.
Doente embora, o grande cantor nacional emprega a sua
atividade em encher de novas joias o seu já tão farto escrínio literário. Belo
exemplo esse à mocidade de hoje, a quem pertence o futuro do país. É deste modo
que o talento é sacerdócio.
Que importa o labor de uma longa semana? Há, para muito
descanso, o domingo da imortalidade.
Falando dos moços e indicando-lhes tal exemplo, devo
mencionar, entre outros nomes, o do Sr. Bruno Seabra, mavioso poeta paraense, a
quem já os leitores conhecem sem dúvida por suas delicadas composições. Acaba
ele de chegar da Europa para onde partira há oito ou nove meses.
Demorou-se em
Paris a maior parte do tempo, aplicando como melhor pôde, a sua aptidão e o seu
desejo de saber.
Entre outras composições, trouxe já, impressa uma comédia em
um ato, que intitulou: Por direito de Patchouly. O título indica o assunto: é a
vitória do néscio cheiroso na luta com o homem chão e sisudo, coisa que se vê
todos os dias, mas que o poeta reduziu a um ato chistoso, fácil, epigramático,
original. Tem Bruno Seabra boas qualidades para o gênero, e a sua estreia, se
alguma coisa tem de menos, apresenta já, uma boa amostra do que ele pode fazer
se não parar neste primeiro trabalho. Estou certo de que o autor das Flores e
Frutos corresponderá à justiça que lhe faço, e trabalhará como lhe cumpre na
medida do seu belo talento.
Em São Paulo publicou o Sr. Luiz Ramos Figueira, bacharel e estudante
do 4.º ano de Direito, um volume a que deu por título Dalmo ou os Mistérios da
noite.
Em boa justiça devem-se louvores ao Sr. Figueira. Se a sua
obra acusa descuidos, revela qualidade de imaginação e de apreciação; há nela
muitas belezas derramadas por muitas páginas. Uma boa crítica não pode deixar
de acolher a obra do Sr. Figueira como um presente que promete outros muitos, e
a isso fica virtualmente emprazado o leitor.
Pertence o Sr. Figueira à mocidade acadêmica de São Paulo,
onde os moços sabem entremear os estudos jurídicos com os literários, e não
esquecem a vocação do berço pelo labor do curso acadêmico.
E já que estou no capítulo dos moços, falarei de um,
verdadeira criança, não tanto pelos anos, como pela ingenuidade do coração e do
espírito. É nada menos que um poeta. Se lhe falta a beleza da forma, sobra-lhe
o sentimento da poesia, que é o essencial e o que não se adquire.
Quem pode alcançar dinheiro de um usurário? Este é um usurário
das musas, e para alcançar os versos que abaixo transcrevo, foi-me preciso
surpresa. Ainda assim custou-me convencê-lo depois de que devia publicá-los.
Consentiu sob condição de lhe não publicar o nome. Anuí. Os versos não são
originais; são traduzidos de um poeta da Rumania. Não são perfeitos, mas são
agradáveis de ler:
Sincero amor tu me juraste um dia
Até que a morte te deitasse o véu;
Tudo passou, tudo esqueceste, tudo,
Coisas do mundo, o erro não é teu.
“Ó meu amado, me disseste, eu quero,
Eu quero dar-te meu quinhão do céu!”
Dessas promessas olvidaste todas.
Coisas do tempo, o erro não é teu!
Sabes que pranto derramei no dia
Em que juraste o teu amor ao meu;
Morri por ti, tu me esqueceste, embora,
Coisas do sexo, o erro não é teu.
Mudo abracei-te; teu ardente lábio
Celeste orvalho sobre mim verteu;
Veio depois a gota de veneno...
Coisas do sexo, o erro não é teu.
Tudo, a virtude, o amor, a fé, a honra,
Tudo o que prometias, te esqueceu;
Ah! nem remorsos nem amor conheces.
Coisas do sexo, o erro não é teu!
A lei do ouro e da banal vaidade
Dessa tua alma fé e amor varreu;
Curaste a chaga, amorteceste a sede,
Coisas do sexo, o erro não é teu.
Pesar de tudo, o coração amante
Há de bater de amor no peito meu
Ao pressentir-te. Ficas sempre um anjo...
Coisas do amor, o erro não é teu!
O meu poeta procurou conservar a mais estrita fidelidade.
Não vi o original e não pude comparar; mas há expressões, que ele próprio
indica, e que são verdadeiras belezas do original; aquele verso Curaste a chaga, amorteceste a sede é uma delas.
Parece-me a poesia graciosa, e como tal a ofereço aos
leitores.
O meu poeta, esse, encerrado na sua torre de marfim,
adormece e procura esquecer-se, poetando para si. Não louvo nem condeno a
reclusão voluntária; admiro e lastimo.
Para concluir estas linhas, lançadas ao papel em uma época
de verdadeiro fastio para mim, menciono o fato que há muito se não repete de
uma reunião, tanto ou quanto numerosa, de artistas nesta Corte. Veio do sul
Arthur Napoleão; de Lisboa, o Sr. Croner, clarinete, que teve em Londres o
sucesso mais lisonjeiro que pode ter um artista, o da consagração entusiástica
da crítica refletida e competente.
Acrescentem-se a esses — outros, filhos do país ou
estrangeiros aqui residentes e cujos nomes todos sabem. Se há ocasião para
concertos é esta. Se cada um deles der a sua festa artística pode haver muitas
e relativamente esplêndidas. No Lírico o barítono Celestino e o soprano Briol
são aplaudidos pelos diletantes, e nomeadamente no Rigoletto, onde agradaram.
Acrescente-se ainda que esta, a chegar uma companhia de ópera cômica francesa e
terá se completado assim o capítulo da música. E eu termino este pedindo escusa
da minha avidez.
Post-scriptum.
Já estava composta a crônica quando recebi uma notícia que
me confirma nas esperanças de uma boa estação musical. Arthur Napoleão oficiou
a comissão da subscrição nacional oferecendo os seus serviços em favor dos fins
para que ela se organizou. Naturalmente a oferta será aceita. É inútil repetir
o que em todos desperta este ato cavalheiresco do distinto pianista.
Machado de Assis
Texto-fonte:
Obra Completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.
Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de
Janeiro, de 05/04/1888 a 29/08/1889.
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