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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

ITABUNA VIVE IMERSA NUM ETERNO VELÓRIO – Braulino Santana

Itabuna vive imersa num eterno velório


          O cortejo dos desesperados, uma leva de gatos pingados e mulambentos, calçados de sandália de dedo de feira, arrasta-se conduzindo o defunto ladeira acima. Repousa no caixão, olhos cerrados e boca em agonia, mais um garoto de 16 anos, apunhalado a facadas na periferia de Itabuna. O velório, numa noite longa, é interrompido vez ou outra por um choro em desconforto. A sensação de abandono sufoca o ambiente, e flagra a ausência de qualquer autoridade pública – um delegado, o prefeito, um promotor, um vereador, nada nem ninguém que ouça aquela história e não a deixe esvair-se em vão.
          Aquela história termina em melancolia, como a de centenas de outras e codifica a falência completa de organização social mínima. É o décimo sexto rapaz assassinado, em menos de dois meses, na cidade que ostenta a macabra cifra de mais violenta da Bahia – a Nigéria do Boko Haram é aqui. Um dilúvio ou uma bola de fogo vinda de um céu com aquelas nuvens de fumaça enegrecida de campos de concentração resolveriam a inação da classe média da outrora ‘capital do cacau’: Itabuna precisa morrer de uma certa forma (na verdade, já está morta, pois lidera o macabro ranking no Brasil com o maior índice de assassinato de jovens em cidades com mais de 200 mil habitantes – a Bahia ocupa o posto de segundo estado no país nesse ranking) para que as suas cinzas modelem um novo começo, novas consciências – a frieza de conviver com índices de violência atormentadores e se fechar num silêncio cúmplice é atitude de gente-defunta. A violência se intensifica e se cronifica por incidir sobre as classes mais desassistidas e periféricas, entregues à própria sorte.
          A bola de fogo poderia começar abatendo certeira, rápida e lancinante as ideias ensinadas nos Departamentos de Direito e de Filosofia da UESC. Aliás, o governo do Estado deveria interditar a UESC – ou lacrar aquilo ali, emulando o fechamento da tampa do caixão de dezenas de jovens que morrem a faca, a bala, a marteladas. Como é possível uma cidade estampar números obscenos de violência e uma faculdade de Direito – lugar onde a noção de Justiça deve ser ensinada e aprendida – sair impune? Para que serve investir tanto dinheiro público em um ambiente narcisista e simbolicamente violento ele mesmo? Quando vociferam por aqueles corredores a demagógica manutenção do “estado de direito”, “estado de direito” é traduzido aqui como a manutenção dos privilégios da classe média calculista no poder ali.
          Se uma universidade não consegue apresentar estudos e alternativas de políticas que combatam aberrações como a violência, ela é defunta por si mesma, e já passou da hora de ser enterrada junto com o banho de sangue com o qual lava as mãos e as enxuga com seus currículos duvidosos. Desconfia-se, portanto, de que onde há violência ou miséria, isso é ensinado e aprendido por gerações, e desconfia-se de que a própria universidade eduque para a morte, já que ela não consegue ensinar a conviver pacificamente ou a estabelecer discussões políticas mínimas que combatam os problemas que suas comunidades pagam para ela ajudar a resolver.
          Sequências de ocupantes daquela reitoria (a atual reitora aparece vestida de vermelho na internet e maquiada na imprensa pedindo ao DNIT, socorro!, uma lombada em frente à UESC) disputam a gestão da universidade sem ser capaz de escrever uma linha sequer sobre os graves problemas da região. Não atuam como intelectuais. Estão ali para ostentar seus carros, maquiagens, perfumes caros, e não apresentam estratégias para refletir sobre o que quer que seja. A reitoria da UESC deveria promover a criação de um núcleo permanente de estudos e pesquisas sobre a violência na região. Estimular e obrigar sociólogos, pesquisadores do direito, pedagogos, economistas, filósofos, cientistas políticos a responder para a sociedade por que ganham salários públicos e se escondem em suas casas de praia, no conforto de suas vidas vazias, deixando a sociedade assolada por problemas sociais inadmissíveis, como a ausência de saneamento e a incidência de violência há décadas.
          Há décadas Itabuna vive imersa em esgotos (o canal do São Caetano e o do bairro Santo Antônio são dois exemplos horripilantes) como se fossem bocas com todos os dentes podres. Carnes são vendidas a poucos metros de fezes naquelas feiras livres – se as autoridades públicas abandonam as populações a comprar víveres ao lado de fezes, isso estimula e justifica a violência numa outra ponta, já que homens e mulheres vão devolver uns para os outros o que receberam. Os investimentos públicos que conseguem escapar da gatunagem do superfaturamento e da corrupção se concentram nos bairros do centro e da classe média. A reforma da Avenida do Cinquentenário – rua central – e o calçamento de bairros como o Jardim Vitória (onde mora boa parte da gente rica) é prova da valorização dos lugares dos endinheirados.
          No ano de 2834, quando essa história for contada como ela de fato ocorreu, Itabuna será lembrada como a cidade do esgoto e dos assassinatos abertos contra pretos pobres da periferia. E suas memórias serão reconstruídas a partir das histórias de diplomados funcionais em direito, economia, pedagogia e filosofia da UESC, reconhecida, então, como a universidade que promovia a morte ou, no mínimo, deixava a morte acontecer.



Braulino Pereira de Santana, doutor em Linguística pela UFBA 


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2 comentários:

  1. Grande Braulino Santana! - Dizem que "a universidade é a alma de uma região". Lembro-me que há 4 anos fiz este comentário para um professor da UESC e ele respondeu-me: "aqui tem mesmo, Eglê, muita alma penada". Na hora achei engraçada essa resposta, depois refleti e fiquei triste, pois esse professor é um homem sério e não falaria à toa. Triste, doutor Braulino, muito triste!...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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