Itabuna vive imersa num eterno velório
O cortejo
dos desesperados, uma leva de gatos pingados e mulambentos, calçados de sandália
de dedo de feira, arrasta-se conduzindo o defunto ladeira acima. Repousa no
caixão, olhos cerrados e boca em agonia, mais um garoto de 16 anos, apunhalado
a facadas na periferia de Itabuna. O velório, numa noite longa, é interrompido
vez ou outra por um choro em desconforto. A sensação de abandono sufoca o
ambiente, e flagra a ausência de qualquer autoridade pública – um delegado, o
prefeito, um promotor, um vereador, nada nem ninguém que ouça aquela história e
não a deixe esvair-se em vão.
Aquela
história termina em melancolia, como a de centenas de outras e codifica a
falência completa de organização social mínima. É o décimo sexto rapaz
assassinado, em menos de dois meses, na cidade que ostenta a macabra cifra de
mais violenta da Bahia – a Nigéria do Boko Haram é aqui. Um dilúvio ou uma bola
de fogo vinda de um céu com aquelas nuvens de fumaça enegrecida de campos de
concentração resolveriam a inação da classe média da outrora ‘capital do
cacau’: Itabuna precisa morrer de uma certa forma (na verdade, já está morta,
pois lidera o macabro ranking no Brasil com o maior índice de assassinato de
jovens em cidades com mais de 200 mil habitantes – a Bahia ocupa o posto de
segundo estado no país nesse ranking) para que as suas cinzas modelem um novo
começo, novas consciências – a frieza de conviver com índices de violência
atormentadores e se fechar num silêncio cúmplice é atitude de gente-defunta. A
violência se intensifica e se cronifica por incidir sobre as classes mais
desassistidas e periféricas, entregues à própria sorte.
A bola de
fogo poderia começar abatendo certeira, rápida e lancinante as ideias ensinadas
nos Departamentos de Direito e de Filosofia da UESC. Aliás, o governo do Estado
deveria interditar a UESC – ou lacrar aquilo ali, emulando o fechamento da
tampa do caixão de dezenas de jovens que morrem a faca, a bala, a marteladas.
Como é possível uma cidade estampar números obscenos de violência e uma
faculdade de Direito – lugar onde a noção de Justiça deve ser ensinada e
aprendida – sair impune? Para que serve investir tanto dinheiro público em um
ambiente narcisista e simbolicamente violento ele mesmo? Quando vociferam por
aqueles corredores a demagógica manutenção do “estado de direito”, “estado de
direito” é traduzido aqui como a manutenção dos privilégios da classe média
calculista no poder ali.
Se uma
universidade não consegue apresentar estudos e alternativas de políticas que
combatam aberrações como a violência, ela é defunta por si mesma, e já passou da
hora de ser enterrada junto com o banho de sangue com o qual lava as mãos e as
enxuga com seus currículos duvidosos. Desconfia-se, portanto, de que onde há
violência ou miséria, isso é ensinado e aprendido por gerações, e desconfia-se
de que a própria universidade eduque para a morte, já que ela não consegue
ensinar a conviver pacificamente ou a estabelecer discussões políticas mínimas
que combatam os problemas que suas comunidades pagam para ela ajudar a
resolver.
Sequências
de ocupantes daquela reitoria (a atual reitora aparece vestida de vermelho na
internet e maquiada na imprensa pedindo ao DNIT, socorro!, uma lombada em
frente à UESC) disputam a gestão da universidade sem ser capaz de escrever uma
linha sequer sobre os graves problemas da região. Não atuam como intelectuais.
Estão ali para ostentar seus carros, maquiagens, perfumes caros, e não
apresentam estratégias para refletir sobre o que quer que seja. A reitoria da
UESC deveria promover a criação de um núcleo permanente de estudos e pesquisas
sobre a violência na região. Estimular e obrigar sociólogos, pesquisadores do
direito, pedagogos, economistas, filósofos, cientistas políticos a responder
para a sociedade por que ganham salários públicos e se escondem em suas casas
de praia, no conforto de suas vidas vazias, deixando a sociedade assolada por
problemas sociais inadmissíveis, como a ausência de saneamento e a incidência
de violência há décadas.
Há décadas
Itabuna vive imersa em esgotos (o canal do São Caetano e o do bairro Santo
Antônio são dois exemplos horripilantes) como se fossem bocas com todos os
dentes podres. Carnes são vendidas a poucos metros de fezes naquelas feiras
livres – se as autoridades públicas abandonam as populações a comprar víveres
ao lado de fezes, isso estimula e justifica a violência numa outra ponta, já
que homens e mulheres vão devolver uns para os outros o que receberam. Os
investimentos públicos que conseguem escapar da gatunagem do superfaturamento e
da corrupção se concentram nos bairros do centro e da classe média. A reforma
da Avenida do Cinquentenário – rua central – e o calçamento de bairros como o
Jardim Vitória (onde mora boa parte da gente rica) é prova da valorização dos
lugares dos endinheirados.
No ano de
2834, quando essa história for contada como ela de fato ocorreu, Itabuna será
lembrada como a cidade do esgoto e dos assassinatos abertos contra pretos
pobres da periferia. E suas memórias serão reconstruídas a partir das histórias
de diplomados funcionais em direito, economia, pedagogia e filosofia da UESC,
reconhecida, então, como a universidade que promovia a morte ou, no mínimo,
deixava a morte acontecer.
Braulino Pereira de Santana, doutor em Linguística pela UFBA
* * *
Grande Braulino Santana! - Dizem que "a universidade é a alma de uma região". Lembro-me que há 4 anos fiz este comentário para um professor da UESC e ele respondeu-me: "aqui tem mesmo, Eglê, muita alma penada". Na hora achei engraçada essa resposta, depois refleti e fiquei triste, pois esse professor é um homem sério e não falaria à toa. Triste, doutor Braulino, muito triste!...
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