Carta de Amor
Meu Querido,
Não sei por onde começar. Nós nos falamos tanto e tão pouco.
Talvez eu deva usar um começo clichê pra cartas como estas. Peço desculpas por
isso, sei como é algo que te fere.
Mas sinto tua falta.
Tu, que aceitou e aceita minhas esquisitices, minhas
escolhas gaúchas.
Um amigo me disse que a ideia de fazer um mestrado em
Criação Literária, em Creative Writing era um pouco absurda.
Ele
mesmo se considerava fluente e dizia que não se sentiria confortável. A questão
não era fluência em si, ele dizia.
Mas tu perdoou e compreendeu, como sempre, como até hoje. Tu
sabe que comecei a me relacionar com outros muito cedo. Uma geração que nasceu
ouvindo a lenga-lenga toda de globalização, uma geração de anjos alfabetizados
em inglês.
Ignorei meu amigo, segui em frente com as applications.
Achava que seria mais fácil. Tu sabe que trabalho e trabalhei com tradução do
Inglês e do Francês. Só aí já te traio com tanta frequência. Já passei longos
períodos de tempo longe de ti. Uso expressões gringas o tempo todo. Fiz 96,8%
de acertos totais no TOEFL, Test of English as a Foreign Language. Mas,
como já diria Wesley Safadão, aquele 1%… (No caso, 3,2%.) Não é o mesmo sem o
teu calor em torno. Algumas palavras que em inglês pareciam ajudar a ilustrar
um ponto agora parecem atrolhar tudo. Atrolhar, olha que linda palavra.
Não que faltem palavras, não que eu não consiga me
expressar. Não me vejo como uma pessoa que inventa moda com linguagem. Ah, inventar
moda, olha que bela expressão. Amo Guimarães Rosa, Manoel
de Barros, mas meu vocabulário total em português deve ter umas trinta e
cinco palavras — talvez cinquenta se contar as expressões pra comida. Uso no
máximo três tempos verbais. Então não é o vocabulário, e não é a fluência, como
disse meu amigo.
Consigo discutir com os coleguinhas em aula — e, ah,
discutiria mesmo se não conseguisse em certos momentos. Escrevo meus assignments em
inglês, os professores conversam comigo depois da aula, corrigem alguns ons
que são ins, dizem que algumas coisas são bastante publicáveis e que eu
deveria começar a pensar nisso. I can get the message across, entende?
Existem um milhão de memes sobre palavras em
inglês e em francês e em alemão e em japonês que significam sentimentos
específicos, ideias tão complexas. Como a famosa Schadenfreude —
literalmente, alegria do dano — e traz a ideia de satisfação e alegria dado
pelo sofrimento ou infortúnio de um terceiro. Como L’esprit de l’escalier, Tsundoku e
a menos famosa Leidenschaft, que meu pobre editor Marcelo Ferroni conhece
há tanto tempo.
Mas a gente tem tantas palavras for granted o
tempo todo.
Tipo atrolhar. Tipo chamego, dengo. Existem milhões de autores
geniais em inglês, mas esses tempos quis mencionar um negócio que o Luiz Ruffato falou e fiquei parecendo a pessoa que lê
as coisas mais underground do mundo. E Guimarães Rosa? E Machado de Assis? Referências indie, todos.
Não que nós não soubéssemos que ia ser assim. Era óbvio que
seria. Não que eu esteja me queixando. Por mais que estejamos distantes, sei
que nossa relação cresce, cresceu, vem crescendo e crescerá ainda mais. Mas
fazes-me falta, entende? Preciso deixar claro.
Em agosto, não só tenho que entregar uma tese quanto tenho
que entregar um projeto criativo, um romance. E vai ser sobre nós, sobre os
deslocados, somos os emigrantes e imigrantes. Só que não sei se vou saber fazer
sem a tua ajuda.
Apesar de fazer tudo com o outro, ainda sonho contigo todas as
noites.
Espero que não te ofenda, mas talvez mais do que de ti,
Português, eu sinta falta da Língua Brasileira. Língua Brasileira, como diz no
título do livro do Sérgio Rodrigues. Talvez mais do que tua falta, eu sinta
falta de ser brasileira.
Talvez não.
Fique bem.
Com saudades (essa palavra intraduzível),
Luisa
* * * * *
Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos
de mentira(finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista
do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de
Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes
de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em
2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa
imagem simpática.
* * *
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