A lei e os dramas humanos
O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas,
dramas e angústias humanas
Em outros tempos o cidadão comum supunha que o território do
Direito e da Justiça fosse cercado por um muro. Só os iniciados – os que tinham
consentimento dos potentados – poderiam atravessar a muralha. O avanço da
cidadania, nos últimos tempos de Brasil, modificou substancialmente este
panorama.
O
mundo do Direito não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da
seara jurídica. Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que
poderíamos chamar de "universo jurídico". Daí a
legitimidade da participação do povo nessa esfera da vida social.
Cidadãos
ou profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como
profissional que fiz a viagem.
Comecei como advogado, integrei depois o
Ministério Público. Após cumprir o rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito
porque a magistratura era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no Espírito Santo,
como juiz foi, não no Espírito Santo, meu avô pernambucano – Pedro Carneiro
Estellita Lins. Esse avô, estudioso e doce, exerceu tamanho fascínio sobre mim
que determinou a escolha profissional que fiz.
Meu caminho, nas sendas do Direito, foi marcado de
sofrimento em razão de conflitos íntimos.
Sempre aprendi que o juiz está
submetido à lei. E continuo seguro de que este princípio é verdadeiro.
Abolíssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o regime do
arbítrio.
Não obstante a aceitação de que o "regime de
legalidade" é uma conquista do Direito e da Cultura, esta
premissa não deve conduzir à conclusão de que os juízes devam devotar à
lei um culto idólatra.
Uma coisa é a lei abstrata e
geral. Outra coisa é o caso concreto, dentro do qual se situa a condição
humana.
À face do caso concreto a
difícil missão do juiz é trabalhar com a lei para que prevaleça a Justiça.
Não foram apenas os livros que me
ensinaram esta lição, mas também a vida, a dramaticidade de muitas situações.
Há uma hierarquia de valores a ser
observada.
Não é num passe de mágica que se faz a
travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o caminho é difícil. Exige
critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado da cultura simplesmente
jurídica.
O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas,
dramas e angústias humanas. Não é através do manejo dos silogismos que se
desvenda o Direito, tantas vezes escondido nas roupagens da lei. O olhar do
verdadeiro jurista vai muito além dos silogismos.
Da mesma forma que os cidadãos em geral não podem fechar os
olhos para as coisas do Direito, o estudioso do Direito não pode limitar-se ao
estreito limite das questões jurídicas. O jurista que só conhece Direito acaba
por ter do próprio Direito uma visão defeituosa e fragmentada.
Estamos
num mundo de intercâmbio, diálogo, debate.
Se
quisermos servir ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da
sociedade, impõe-se que abramos nosso espírito a uma curiosidade variada e
universal.
João Baptista Herkenhoff, 81 anos, magistrado aposentado, é
Professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e escritor. Autor do
livro Dilemas de um juiz: a aventura obrigatória (Rio, GZ Editora,
2009).
E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br
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