Como Abraão, ele foi também pai de
um numeroso povo. Qual predestinado, teve na vida uma grande missão que soube
cumprir com retidão de caráter e grande bondade, sendo a sua passagem pelo
mundo uma trajetória de trabalho, idealismo e desprendimento. A história desse
Patriarca teve início em março de 1863 quando, ainda adolescente, chegou à
região Sul da Bahia em companhia dos pais, irmãs e do avô. Nas matas do Sul ele
cresceu e aprendeu a desvendar seus segredos. Ambientou-se ao novo clima, sobreviveu
a febres mortais e enfrentou toda a labuta e sacrifícios que o novo meio
oferecia no dia-a-dia. José Firmino Alves, foi o seu nome. Filho de
desbravador, seu pai, o sergipano José Alves, foi dos primeiros a se lançar na
grande aventura do Sul. Quando chegou a essas terras do Município de Ilhéus,
acompanhado da família, havia por esses lados apenas a aldeia de índios mansos
em Ferradas, dirigida por frades missionários. Tudo o mais era mata com todas
as suas características selváticas, onde apenas as clareiras abertas por Félix
Severino e Manoel Constantino indicavam o trabalho de pioneirismo.
O pequeno grupo começou vida dura
de desbravadores na mata cerrada, entre índios, com carência de tudo o que
fosse necessário à saúde ou ao conforto. Enfrentando chuvas rigorosas e
invernos úmidos, falta de qualquer meio de transporte, só mesmo os fortes de
espírito podiam suportar as adversidades daquele meio. Mas José Alves se
estabeleceu com a família nesse ermo, limpou a terra e plantou cacau. Da luta
do homem e mata resultou a vitória do primeiro, quando as verdes plantações de
cacaueiros dominaram a terra subjugada pelo trabalho daquele punhado de
destemidos sergipanos. A Burundanga foi o reduto dessa família corajosa onde o
velho José Alves viria mais tarde a sucumbir.
Com a morte do pai, o moço José
Firmino assumiu a responsabilidade de cuidar da família e continuar o trabalho
do velho pioneiro.
Nas margens do Rio Cachoeira,
principal vias dessa terra brabas, outros desbravadores aos poucos se
instalaram; com eles, rústicas vendolas surgiram, as “tabocas”, destinadas a
atender com o pequeno comércio de fumo, açúcar, querosene, os sertanejos que
transitavam de Conquista para Ilhéus com seus carregamentos de requeijão, charque,
e por aqui faziam pernoite certo. José Firmino passou também a negociar. Abriu
pequena casa de comércio, misto de loja e armazém. As suas atividades se
dividiram então entre a roça de cacau e o comércio. Em torno das vendolas ou
“tabocas”, da beira do rio, acabou se formando um aglomerado de pequenas casas
cobertas de palhas umas, outras de telhas – o arraial das Tabocas (1873).
A casa comercial de José Firmino
tinha mercadoria variada que ia, desde tecidos de algodão a gêneros alimentícios,
sabão, querosene, chumbo para caça, o que atendia às necessidades das famílias
do nascente arraial e das roças. Já não era mais preciso a longa caminhada para
a vila de Cachoeira, pois Tabocas começava a fornecer à pequena população, os
gêneros de necessidade. Assim, o pequeno armazém foi prosperando. O amor à
terra onde crescera e onde se sentia arraigado, aumentou no moço comerciante o
seu sonho de vê-la progredir. Queria ver o arraial das Tabocas crescer,
prosperar e que muita gente viesse colaborar para aquele progresso. De sob
aquelas árvores, de dentro daquele mato, haveria de sair a Terra da Promissão
onde correria, não leite e mel, mas dinheiro, muito dinheiro. Não se limitou o
moço sergipano a cuidar somente do seu patrimônio, a simplesmente plantar
cacau, multiplicar suas roças e descansar na própria riqueza. Ele queria a
prosperidade da terra.
Famílias foram chegando para o
arraial. Na mata, as clareiras aqui e acolá indicavam a penetração de outros
bravos pioneiros. O tempo foi passando. Já dono de um sólido patrimônio,
conhecido na capital do Estado, onde ia fazer compras para abastecer sua casa
de comércio já próspera e forte, o então coronel José Firmino Alves, com
crédito firmado, abriu em uma conceituada casa comercial de Salvador uma conta
corrente para financiar às suas custas o transporte de patrícios seus, os mais
pobres, a fim de que pudessem vir para Tabocas sem dificuldades monetárias, e
aqui trabalhar. Distribuía ainda por sua conta, instrumentos de lavoura com os
chegantes, que rumavam mata a dentro, abrindo suas próprias roças.
José Firmino enxergava muito além
do seu tempo. Já estabelecido no arraial, anteviu a cidade que devia nascer e
crescer para um futuro de grandeza. Sentiu a necessidade de incentivar a
fixação na terra de elementos úteis e de valor que a procurassem. Na falta de
um hotel, cedeu uma casa de sua propriedade para acomodar as pessoas de bem que
chegassem. Era a “República dos Hóspedes”. Estes aí ficavam acomodados até que
se estabelecessem no trabalho e em casa, por conta própria.
São muitos os que procuram Tabocas,
aquela pequena colmeia de sergipanos e sertanejos. Vêm do interior do Estado,
do Recôncavo (Santo Amaro é um grande celeiro de migrantes), da capital, de
outros Estados e até de terras longínquas do Oriente, das regiões da Síria e do
Líbano.
O incipiente arraial haveria de
progredir sob a inspiração mágica daquele coronel que manda construir um
sobrado de bonita arquitetura para sua residência, o primeiro e único daquela
povoação, pouco importando o aspecto simplório do arraial de chão coberto de
lama e capinzal. Aquela construção de aspecto senhorial, com suas janelas de
gradis de ferro trabalhado e emolduradas por lindos florões esculpidos em cimento
nas suas três fachadas, era um atestado de amor à terra e confiança no seu
futuro. Acolhedor, tornou-se aquele sobrado o centro da vida política e social
do arraial de Tabocas. Nos seus salões, importantes decisões da política e da
vida regional foram tomadas, sem falar nas alegres comemorações nele realizadas
e nos animados saraus dançantes feitos sob a claridade de bonitos lustres de
bico de gás e ao som de um piano que o Coronel mandara buscar em Salvador.
Entre jarrões de louça alemã e o tinir de cristais, poesias eram declamadas
pelos moços da terra e, pelas jovens mais dotadas de voz, belas canções
quebravam o silêncio das noites do arraial. Eram os encontros de congraçamento
que o “sobrado do coronel” proporcionava, consolidando, fortalecendo uma sociedade
em formação. O bonito sobrado era o cérebro e a alma do arraial e depois vila
de Itabuna.
Já tendo constituído família,
casado com dona Lucrécia Selmann, de tradicional família ilheense, coronel,
Firmino Alves envia suas filhas a estudarem em Salvador, a despeito de todas as
dificuldades de transporte da época e embora vivendo num meio onde poucas
mulheres tinham acesso à instrução.
Esse coronel de maneiras simples e
afáveis, crescido e vivido na mata e depois no arraial, tinha alma de esteta.
Além da bonita construção de sua residência, presenteia uma de suas filhas
casadas com um outro belo sobrado de inusitado estilo para aquele meio, aqueles
primeiros tempos de Itabuna, uma imitação de um castelo medieval. Essa construção
foi entregue à direção do mestre de obras, o português “seo Américo”,
responsável por muitas das melhores obras de Itabuna. Internamente, as suas
paredes foram decoradas com lindas pinturas de flores e guirlandas em suave
colorido, num trabalho primoroso de um pintor vindo especialmente de Salvador
para executá-lo. O lindo teto de madeira trabalhada e o piso de madeira de lei,
além da bela porta de madeira entalhada e vidro bisotado, acabavam de
enriquecer todo o conjunto. Esse sobrado, o “castelo” como era chamado, ficou
como um marco na paisagem urbanística de Itabuna pela sua beleza e arquitetura
fora do comum.
O progresso material em Tabocas era
sensível, corria dinheiro, casas eram construídas, as sacas de cacau se
empilhavam nos depósitos das fazendas e nos armazéns, as tropas cresciam, o
comércio se movimentava, mas a população crente e fervorosa se ressentia da
falta de vida espiritual. Atendendo aos apelos das almas piedosas, José Firmino
dá uma área de suas próprias terras para que fosse nela erigida uma igreja sob
o patrocínio de São José – à qual seria mais tarde a igreja matriz de Itabuna
(1893).
O povoado de casinhas modestas e
ruas enladeiradas crescia cada vez mais. Gente boa e gente ruim nela fincava
pouso; era a aventura do dinheiro, o desejo da fortuna através dos frutos
amarelos dos cacaueiros.
Chega o ano de 1906. O distrito de
Tabocas, desmembrado do município de Ilhéus, passa a município, vila e termo
com o nome de Itabuna. Uma representação fora enviada à Câmara dos Deputados
Estaduais, pedindo a criação do Município de Itabuna. Um dos signatários era o
coronel José Firmino Alves, que se comprometia a doar os prédios necessários
para a Intendência, o Quartel da Polícia e a casa do Juiz Preparador. Vai à
capital do Estado e solicita, pessoalmente, do Arcebispo Dom Jerônimo Tomé da
Silva, a criação da Paróquia. Diante das dificuldades apresentadas pela falta
de padres disponíveis, José Firmino faz uma discreta advertência: “Bem,
Eminência, se não há um sacerdote católico que possa ir para a vila de Itabuna,
então convidarei um Pastor protestante”. O impasse é logo resolvido e fica
garantida a vinda de um vigário para a futura paróquia, comprometendo-se mais
uma vez Firmino Alves a doar como patrimônio da mesma uma casa para residência
do vigário, que seria o Monsenhor Moisés Gonçalves do Couto, o primeiro a
ocupar o importante cargo. Assim foi criada a Paróquia de São José (1908).
Em recompensa pelos seus serviços
no campo espiritual, foi Firmino Alves agraciado pelo Santo Padre Pio X, com a
comenda Pró Eclesia et Pontifice e a bênção papal (1913).
Esse homem de espírito batalhador e
coração generoso ficou rico, conservando uma modéstia singular. Chefe político
de grande prestígio, jamais pleiteou para si uma eleição, como também jamais
deu guarida a jagunços em suas fazendas ou praticou um ato que desabonasse a
sua conduta.
A vila de Itabuna prosperava
rápido. Muita gente para ela convergia. Vieram os morigerados e trabalhadores,
vieram assassinos e desordeiros. Dias alegres e dias de terror marcavam seu
calendário. Firmino Alves participa de memoráveis acontecimentos políticos como
líder respeitado. Num período de muitas violências, quando o banditismo atingiu
uma de suas fases mais agudas, ele foi a Salvador e, pessoalmente, expôs ao
Governador, o dr. Araújo Pinho, a caótica situação. Inteirado das terríveis
ocorrências, o dr. Araújo Pinho, que tinha conhecimento do valor moral de
Firmino Alves e do seu espírito ordeiro, ofereceu-lhe as posições políticas do
Município e cargos para seus amigos, o que lhe dava com isso, amplos poderes
para mandar e desmandar. Mas, delicadamente, ele recusa o poder e diz ao
governador que nada deseja para si próprio, queria apenas uma coisa: a
manutenção da ordem, e ficava satisfeito. O governador promete atender o seu
pedido e nesse sentido nomeia um Delegado Regional que vem com uma força
policial manter a ordem e pacificar o Município.
Os anos passaram e o Patriarca de
olhar calmo e semblante plácido viu o seu povo crescer. Viu crescer a cidade
que ele criou com amor e com honradez a legou à posteridade.
A sua vida de trabalho e lutas políticas
não passou incólume de sofrimentos e ingratidões. Amargou os dissabores da
política e do banditismo. De certa feita teve de refugiar-se em Salvador por
mais de seis meses para escapar à fúria assassina de seus adversários
políticos, mas sem nunca deixar de lutar pelos interesses de sua terra.
Com elevado espírito público viveu
com desprendimento, amando a cidade que nasceu de seu sonho, dando a ela tudo o
que pôde dar de bom e de si mesmo.
Por motivos particulares, nos
últimos anos de sua vida passou a residir em Salvador. Era o pássaro ferido,
engaiolado, saudoso da amplidão das matas verdejantes onde vivera.
Sentindo o peso da idade, sentia
também saudades da terra querida, daquele chão que pisara desde a adolescência,
daquele céu que tantas vezes mirara, daquelas estrelas que tantas vezes tentara
contar nas noites escuras da mata. E volta em busca de sua Itabuna querida,
para nela dormir o sono derradeiro e entregar à terra amada os despojos do
velho guerreiro, já cansado e combalido de tantas lutas. Não quis dormir em
terras alheias, buscou o seu povo, o Patriarca que previu o futuro e grandeza
de uma cidade.
(TERRAS DO
SUL)
Helena
Borborema
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