31 de julho de 2020
Jesus Cristo expulsa os vendilhões do Templo – Giotto di Bondone, séc. XIV. Capella degli Scrovegni, Pádua.
O Cardeal Antônio Marto, bispo de Leiria-Fátima, Portugal,
se pronunciou do mesmo modo. Questionado se concordava com os padres, e mesmo
cardeais, que alegavam ser o coronavírus um castigo de Deus, ele respondeu, em
flagrante contraste com a mensagem de Fátima: “Isso não é cristão. Só o diz
quem não tem na sua mente ou no seu coração, por ignorância, fanatismo sectário
ou loucura, a verdadeira imagem de Deus Amor e Misericórdia revelada em Cristo”.2
Outro prelado, o Cardeal Blase Cupich, arcebispo de Chicago,
também parece dar pouco valor à oração durante uma pandemia. Com relação ao
desejo de alguns fiéis, de que as missas sejam permitidas aos fiéis nas
igrejas, ele comentou: “Religião não é mágica, onde apenas fazemos orações
e pensamos que as coisas vão mudar. Deus nos deu um cérebro e o dom da
inteligência, e temos que usá-los neste momento”.3
O Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap. [foto abaixo], Pregador
da Casa Pontifícia desde 1980, também negou, em sermão na noite da Sexta-Feira
Santa na Basílica de São Pedro vazia, que a atual pandemia pudesse ser um
castigo de Deus: “Deus é nosso aliado, não o aliado do vírus! […] Se esses
flagelos fossem castigos de Deus, seria inexplicável, por que eles atingem bons
e maus; e porque, geralmente, os pobres sofrem as maiores consequências. São
eles mais pecadores que outros?”.4
Não existem razões para uma punição?
Como podem esses eclesiásticos ter tanta certeza de que a pandemia de coronavírus não é uma manifestação da ira de Deus, pelos muitos pecados hodiernos? E certeza também de que não é um castigo ou um aviso de Deus?
A apostasia impressionante da sociedade moderna, em relação
à verdade do Evangelho, leva muitos a se perguntarem se Deus não está enviando
uma mensagem à humanidade por meio do coronavírus. Ele poderia estar
dizendo: “Eu repreendo e castigo aqueles que amo. Reanima, pois, o teu
zelo e arrepende-te” (Apoc. 3,19).5
Poderia Deus estar mostrando Seu supremo descontentamento
com a amoralidade, a libertinagem, a perda de fé e o pecado hoje reinantes?
Se considerarmos apenas o aborto voluntário, por exemplo,
não poderia a pandemia ser um castigo divino pelo sangue de milhões de vítimas
inocentes, que sobe ao Céu clamando a Deus por justiça? “Eles derramaram o
sangue dos santos como água ao redor de Jerusalém. E não houve quem os sepultasse.
Vinga, ó Senhor, o sangue dos Teus santos, que foi derramado sobre a terra”.6
As declarações dos eclesiásticos acima mencionados resultam
de uma falsa noção da misericórdia e justiça divinas, e estão em contradição
com a doutrina católica e a Tradição. Por isso parece oportuno relembrar alguns
pontos doutrinários e responder a algumas objeções.
● “Se a pandemia de coronavírus pode ser explicada
cientificamente, não pode ser uma intervenção divina”.
Esta é a objeção usual à intervenção de Deus. Se a ciência
pode explicar a natureza e as consequências do coronavírus (SARS-Cov-2), não
haveria necessidade de considerar a intervenção divina. Entretanto, embora a
ciência positiva possa explicar a mecânica dos desastres naturais, ela não
explica seu significado transcendente.
Excluir qualquer intenção divina nos eventos, seria negar que “todas as coisas, na medida em que participam da existência, devem igualmente estar sujeitas à providência divina”.7 Caso contrário, Deus teria feito a criação sem fim e propósito, portanto não seria sábio; ou então Ele seria incapaz de intervir em sua própria criação, portanto não seria onipotente. Mas isso equivaleria a negar sua existência, pois a simples possibilidade de um Deus imperfeito contradiz a própria noção de Deus. Ou Ele é um Ser absolutamente perfeito, ou o próprio conceito de Deus não faz sentido.
De fato, Deus não apenas criou todos os seres por meio de um
ato soberano de sua divina Vontade, mas os sustenta na existência e os guia
para o fim para o qual os criou, a saber, Sua glória extrínseca, sem entretanto
tirar a liberdade das criaturas racionais. Em outras palavras, toda a Criação
está sob o poder do governo divino, e sujeita aos sábios desígnios de Deus.
Como ensina São Tomás de Aquino:
“Deus é governador e causa dos seres; pois a Ele pertence
produzi-los e dar-lhes a perfeição, o que tudo é próprio de quem governa. Ora,
Deus é, não a causa particular de um gênero de seres, mas a causa universal, da
totalidade dos seres. Por onde, assim como nada pode existir sem ser criado por
Deus, assim também nada há que lhe possa escapar ao governo. […] Por onde, como
nada pode haver que não se ordene à bondade divina como fim, segundo do
sobredito se colhe, impossível é a qualquer ser subtrair-se ao governo divino”.8
São Tomás explica ainda que, embora esse governo divino seja
direto e imediato do ponto de vista do desígnio, isso não significa que Deus
não possa usar meios secundários para a execução final de seus planos.
Consequentemente, Ele pode usar os anjos ou até homens para intervir na
História. Ele pode usar as forças naturais e as leis físicas, que são derivadas
da natureza dos seres quando Ele os criou, e seus relacionamentos entre si.9
No entanto, apenas porque Deus normalmente se utiliza dessas
causas secundárias para executar seus planos, isso não significa que Ele não
esteja direcionando, de maneira superior, todas as coisas para o seu verdadeiro
propósito, que é a sua glória. Deus geralmente age na História sem suspender as
leis da natureza, mas orientando-as na obtenção de resultados específicos. Por
exemplo, quando o Profeta Elias orou pedindo pela chuva em Israel, que estava
sofrendo com uma seca terrível, Deus fez com que muitas nuvens se juntassem e
chovesse fortemente (1 Reis 18, 41-45). Em outras ocasiões Ele suspendeu as leis
da natureza, como, por exemplo, quando os israelitas cruzaram o Mar Vermelho
(Ex 14, 16).
De fato, a perfeição absoluta de Deus exige que Ele aja
continuamente na História. Isto é abundantemente confirmado pelas Sagradas
Escrituras e pelos escritos dos Padres e Doutores da Igreja. Portanto, ao
analisar a atual catástrofe, o governo de Deus no mundo deve ser levado em
consideração.
● “Deus é a própria bondade, portanto, jamais castiga os
homens”.
Esta é outra objeção comum ao castigo divino. No entanto, se
levada à sua consequência lógica e última, negaria o dogma da existência do
inferno.
Visto que Deus é o Ser absolutamente perfeito e a causa de
toda perfeição, Ele deve ter em Si todas as perfeições possíveis.10 Assim,
Ele não é apenas infinitamente bom e misericordioso, mas também infinitamente
justo.
Deus reserva a recompensa ou o castigo final e definitivo
para a outra vida, como pode ser visto na parábola do trigo e do joio (Mt 13,
24-30). Mas Ele também castiga nesta Terra. Esta verdade é formalmente
encontrada nas Sagradas Escrituras. Alguns exemplos são as pragas do Egito (Ex
7-8), o dilúvio (Gen. 6-8), a destruição de Sodoma e Gomorra (Gen. 19) e a
destruição de Jerusalém (Mt 24, 1-2).
Deus julga e castiga os homens, e cada um individualmente
Estátua de Carlos Magno. São Paulo afirma que a “autoridade [terrena] está a serviço de Deus, […] não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal” (Rom. 13, 4).
Além disso, São Paulo afirma que a “autoridade
[terrena] está a serviço de Deus, […] não é sem razão que leva a espada: é
ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que
pratica o mal” (Rom. 13, 4). Mas, como é evidente, nenhuma autoridade
humana poderia ser um ministro ou agente da justiça divina, se o próprio Deus
não aplicasse o castigo terrestre.
Segundo o Apóstolo, o homem não pode escapar à justiça
divina, seja nesta vida ou na próxima: “Tu, ó homem […] pensas que escaparás
ao juízo de Deus? […] Mas, pela tua obstinação e coração impenitente, vais
acumulando ira contra ti, para o dia da cólera e da revelação do justo juízo de
Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras: a vida eterna aos que,
perseverando em fazer o bem, buscam a glória, a honra e a imortalidade; mas ira
e indignação aos contumazes, rebeldes à verdade e seguidores do mal” (Rom.
2, 2-8).
Deus é misericordioso. Mas “sua misericórdia se
estende, de geração em geração, sobre os que o temem” (Lc 1, 50), proclama
a Santíssima Virgem no Magnificat.
● “Como a calamidade afetou tanto os bons quanto os maus,
não pode ser um castigo divino — Deus jamais castigaria o bom”.
Para tratar adequadamente desta objeção, cumpre primeiro
relembrar alguns ensinamentos básicos de nossa Fé católica:
a — Deus é o Senhor da vida: a Ele devemos nossa
existência; e, assim como Ele livremente nos deu vida, é livre para no-la
tirar. Não há injustiça quando Ele o faz, independentemente do estágio da vida,
seja a de um bebê, de uma criança, de um adulto em pleno vigor, ou de alguém
que atingiu a venerável velhice.
b — A vida e a felicidade eternas, não as terrenas, são
nossos objetivos finais: além do mais, nossa vida terrena e a felicidade não
são fins em si mesmas. Elas não são a principal razão de nossa existência. São
o caminho, o meio para alcançarmos a vida eterna, que é nosso verdadeiro
objetivo. Assim, São Paulo nos lembra: “Nós, porém, somos cidadãos dos
céus” (Fip. 3, 20). O modo de agir de Deus se torna incompreensível quando
perdemos de vista a vida eterna e a felicidade celestial.
c — Deus pune o pecado coletivo coletivamente: quando o pecado se generaliza e é grandemente tolerado, ou cometido por indivíduos muito representativos, ele compromete toda a família, a cidade, a região, a nação, e mesmo épocas históricas. Essa dimensão coletiva torna o pecado particularmente grave e ofensivo a Deus, trazendo como resultado o castigo divino também coletivo. Os bons e os maus sofrem: os primeiros, para se tornarem mais perfeitos; os segundos, como castigo por suas faltas e convite à conversão.
O vulcão Galeras ameaça com a sua erupção a cidade de Pasto, no sul da Colômbia. Foram feitas procissões pedindo a Deus que poupasse a cidade do castigo.
Santo Agostinho explica o castigo coletivo
O grande Santo Agostinho, bispo de Hipona, Doutor e Padre da
Igreja, viveu durante as invasões bárbaras que provocaram a queda do Império
Romano do Ocidente. De fato, os vândalos estavam assaltando as muralhas da sua
cidade quando ele morreu.
Durante esse período conturbado, os romanos pagãos culparam
a Igreja pelo colapso do Império e da Civilização. Argumentavam eles que, se o
Império não se tivesse tornado cristão, Júpiter e os outros deuses de Roma o
teriam salvo da destruição. Acrescentavam ainda que o Deus dos cristãos não era
nenhum deus, pois não os havia poupado dos bárbaros.
Santo Agostinho escreveu o livro “A Cidade de Deus” para
defender a Igreja e fortalecer a fé nos corações. Nessa sua obra-prima ele
explica o motivo dos castigos coletivos. Seu raciocínio pode ser resumido da
seguinte forma:
1 — Como as nações como tais não passam para a vida
eterna, elas são recompensadas ou castigadas nesta vida pelo bem ou pelo mal
que praticam. Os bons e os maus sentem os efeitos da recompensa e do castigo.11
2 — Quanto aos bons, o castigo purifica neles o amor a
Deus. Pode até levá-los das tribulações desta vida para a vida eternamente
feliz do Céu. “Os bons têm ainda outra razão para sofrer os males
temporais. É a mesma de Job: que o homem submeta o seu próprio espírito à
prova, e comprove e conheça com que grau de piedade e com que desinteresse ama
a Deus”.12
3 — Por outro lado, com frequência os bons são
justamente castigados pelo egoísmo, falta de coragem e de zelo apostólico, que
os impede de apontar para os maus o desacerto de seus caminhos: “Receiam
pôr em perigo e perder a sua integridade e reputação, […] se comprazem nas
adulações e temem a opinião pública, os tormentos da carne ou da morte, isto é,
por causa dos grilhões de certas paixões e não por causa do dever de caridade”.13
4 — Quanto aos maus, eles são castigados pela “divina
Providência que costuma, com guerras, purificar e castigar os costumes
corrompidos dos homens”.14
Este é também o ensinamento de Santo Tomás, que
afirma: “Justiça e misericórdia aparecem no castigo dos justos neste
mundo, uma vez que pelas aflições são limpos de falhas menores, e eles são mais
elevados das afeições terrenas a Deus. Da mesma forma, São Gregório diz: ‘Os
males que nos pressionam neste mundo nos forçam a ir a Deus’”.15
Nossa Senhora de Fátima: uma advertência profética e
maternal
Em 1917, Maria Santíssima apareceu em Fátima para advertir que, se o mundo não se convertesse e não fizesse penitência, seria castigado: “Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. […] Espalhará [a Rússia] seus erros pelo mundo […]; os bons serão martirizados, […] várias nações serão aniquiladas”.16
Independentemente de as causas da pandemia de coronavírus
serem naturais ou provocadas pelo homem, não podemos excluir os sábios e
insondáveis desígnios da Divina Providência. Pelo contrário, por todas as
razões expostas acima, e de maneira particular pela mensagem de Nossa Senhora
em Fátima, parece-nos que a prudência exige que consideremos com seriedade a
possibilidade de que Deus esteja nos advertindo de nossas falhas e nos
conclamando ao arrependimento.
Deus não quer a morte do pecador, mas a sua conversão.17 No
entanto, se o mundo não atender ao chamado de conversão de Nossa Senhora, não
ficaremos surpresos se tragédias ainda piores afligirem o mundo — a aniquilação
de nações inteiras, por exemplo, como mencionado por Ela em Fátima.
Seja qual for o futuro que nos é reservado, devemos sempre
lembrar que Nossa Senhora também predisse em Fátima a conversão definitiva da
humanidade e sua vitória: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará!”.
Que a série de catástrofes que caíram sobre o nosso País e o
mundo nos ajude a levar a sério o chamado maternal de conversão feito por Nossa
Senhora, pois existe esta promessa divina: “Sê fiel até a morte, e te
darei a coroa da vida” (Apoc. 2, 10).
______________
Notas:
* Este artigo encontra-se disponível em inglês no
link: https://www.tfp.org/is-the-voice-of-god-resounding-in-the-present-pandemic/
Salvatore Cernuzio, “Delpini: Da Pagani Pensare a um Dio Che
Manda Flagelli. A Milano Chiese Chiuse Mai ‘”, La Stampa, 16 de março de
2020, https://www.lastampa.it/vatican-insider/it/2020/03/16/news/delpini-da-pagani-pensare-a
-un-dio-che-manda-flagelli-a-milano-chiese-chiuse-mai-1.38600147 .
(Nossa ênfase).
João Francisco Gomes, “’Ignorância, Fanatismo ou Loucura.’
Cardeal António Marto Crítica Quem Diz Que Pandemia É Castigo de Deus”,
Observador, 15 de abril de 2020, https://observador.pt/2020/04/15
/ ignorancia-fanatismo-ou-loucura-cardeal-antonio-marto-critica-quem-diz-que-pandemia-e-castigo-de-deus
/
Bernie Tafoya, “Cardinal Cupich Prepares For A
First-Of-Its-Kind Easter Amid Coronavirus,” WBBM780.radio.com, Apr. 9, 2020, https://wbbm780.radio.com/articles/cardinal-cupich-prepares-for-a-first-of-its-kind-easter.
Notícias do Vaticano, “O Papa celebra a paixão do
Senhor, como o pregador papal reflete na pandemia de Covid-19”, Vatican News,
10 de abril de 2020, https://www.vaticannews.va/en/pope/news/2020
-04 / papa-francis-paixão-do-senhor-cantalamessa-sermon-coronavirus.html.
As citações bíblicas são da Biblia Ave Maria.
Adaptação do Salmo 78: 3, 9–10, Tracto da Missa dos Santos
Inocentes, Mártires, (dia da festa 28 de dezembro) antigo missal romano latino.
São Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, q. 22, a. 2c.
Ibid., Q. 103, a. 5.
Ver Idem, Ibid., a. 6.
Assim, Santo Tomás diz: “Visto que Deus é a causa primeira e
eficaz das coisas, as perfeições de todas as coisas devem preexistir em Deus de
uma maneira mais eminente”. (I, q. 4 a. 2).
Ver A. Rascol, s.v. “Providence, S. Augustin”, em
Vacant-Magenot-Amann, Dictionnaire de Théologie Catholique (Paris: Letouzey et
Ané, 1936), vol. 13, col. 963.
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, livro I, cap. IX.
Tradução de J. Dias Pereira. 2.a Edição. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa,
1996, p. 124.
Ibid.
Ibid., Cap. 1.
São Tomás, Summa Theologica, I, q. 21, a. 4.
Antonio Augusto Borelli Machado, As aparições e a
mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã Lúcia, Editora Vera
Cruz Ltda., 35ª edição, São Paulo, 1993, pp. 46-47.
Terei eu prazer com a morte do malvado? – oráculo do
Senhor Javé –. Não desejo eu, antes, que ele mude de proceder e viva?” Ezequiel
18:23.
* * *
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