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sábado, 8 de agosto de 2020

O TERRORISTA CULTURAL – Cyro de Mattos

                              O Terrorista Cultural

Cyro de Mattos


            “Espelho, espelho meu, existe alguém no mundo mais infeliz do que eu?”

            Fazia sempre a pergunta e ouvia a voz dizendo, claro que não.  Não era preciso dizer os motivos da sua revolta ante o que a vida fazia com ele.  Sua figura grotesca   falava por si mesma.  Criatura mal vista, de temperamento nervoso, atarracada, cabeça grande enterrada no pescoço, que lhe rendeu quando pequeno, entre os amigos pirracentos, o apelido nada agradável de Cabeçorra.  A semelhança com a cabeça de um bezerro não era mera coincidência.  Era fato incontestável. 

          Viera ao mundo numa data aziaga, 13 de agosto, numa sexta-feira. Cedo ficara sem o pai e a mãe, morreram num desastre de carro. Fora criado por uma tia solteirona, que vivera abraçada ao rancor porque nunca havia provado o melhor doce do mundo.   Nada pior para ele do que quando chegava o dia que se homenageava a mãe ou o pai no recesso da família, com abraços e presentes.  Um suplício, horror. Os meninos mostravam-se contentes com aquela data que exibiam o retrato do pai ou da mãe na vitrina da loja recebendo o abraço carinhoso e o presente do ente querido.

            Participar daquele tipo de   comemoração em data festiva no recesso da família de um amigo nem morto.   A cena do abraço afetivo e o parabéns efusivo o deixariam   com esse desejo de sumir no mundo, melhor se achasse um lugar para se esconder ali mesmo no ambiente alegre.

            Resolveu ingressar na faculdade para graduar-se em letras. Tinha umas ideias na cabeça, achava que podia colocá-las no papel, o curso iria dar-lhe munição excelente para escrever livros de poesia, contos e romances. Dias alegres dormiriam com ele. Não precisaria fazer mais perguntas ao espelho sobre sua sorte no mundo, sempre com as horas tristes, mergulhos doloridos, sombras da infelicidade.  No curso de letras entregou-se de corpo e alma ao conhecimento de grandes autores. Tirava notas altas em cada dissertação apresentada no exame final.

            Apto para exercer a nova etapa de vida como escritor, meteu mãos à obra. Escreveu primeiro um livro de poesia reunindo cem poemas acrósticos. Fez o lançamento antevisto de muitos autógrafos e parabéns dos leitores na livraria da avenida principal. Ó decepção, não vendeu um exemplar.

            Tentou repetir a dose, dessa vez se aventurava pelo universo mágico das histórias baseadas no imaginário popular. Publicado o livro com capa dura, programou o lançamento, com a certeza de que dessa vez a guerra de não ser autor sem leitor seria vencida. Imaginou o evento com muitos autógrafos e vendas que esgotariam a edição de duzentos exemplares, as despesas da impressão do livro custeadas pelo próprio autor, como no livro da estreia, ressalte-se.  Só vendeu dois exemplares.

           “Espelho, espelho meu, existe alguém no mundo mais infeliz do que eu?”

            Firme e categórica, a voz:

            “Alguma dúvida, beleza?”

            Decidiu escrever sua biografia romanceada com desejos de alcançar o merecido círculo extenso de leitores e admiradores. O alentado volume de quatrocentos páginas, intitulado “A dura vida de Silvano Fontana com penúrias e agruras”, seria um sucesso, testemunho pungente e denso das amarguras que havia passado na rotina indiferente da vida.  Todo contente, na livraria cheia de gente a mesa coberta com a toalha de linho, adornada com flores no jarro.  Em festa concorrida de abraços e apertos de mão, imaginou que o evento seria o suficiente para se sentir um escritor realizado, inclusive com o direito de pleitear a ocupação de uma cadeira na conceituada Academia de Letras de Biboca do Japará, prestes a ser inaugurada.

            Vendeu três exemplares.

            Não desanimou, partiu para ingressar na academia de letras.  A posição de membro da nobre instituição iria render-lhe bons frutos, entre eles o de se tornar um escritor com público numeroso.  Agora, cada lançamento concorrido de um de seus livros seria a glória. Em obediência à febricitante compulsão criativa, a cada mês escrevia um livro de ficção.  Sua nova situação de ilustre acadêmico exigia que tivesse o acervo com estoque farto, para acabar com essa situação incômoda de ser um autor sem leitor.

            Apresentou-se à reunião dos membros fundadores da academia, distribuindo exemplares dos três livros publicados e o currículo robusto. Pronunciou um discurso contundente, jurando cumprir os desígnios da instituição contra trovões e tempestades, erguendo alto a bandeira que sustentava o propósito de defender a liberdade de expressão e preservar a pureza da língua.  Causou espanto a quem ouviu, foi aplaudido com palmas sonoras. Era o membro certo que aparecia no momento certo para ocupar uma das cadeiras fundadas pelos patronos ilustres da instituição.  Sem modéstia, declarou que só lhe interessava ocupar a cadeira 26, que tinha como patrono Machado de Assis, o bruxo de Cosme Velho, arguto analista de alma, seu eterno ídolo.    

            Cedo ficaram sabendo que aquela criatura de temperamento irritado, de difícil convivência, não era tão certa assim para ocupar as hostes de uma agremiação que cultivava   o amor às letras, o convívio fraterno com finos tratos. Autoritária, sua presença causava medo no ambiente, até as paredes tremiam quando adentrava o recinto. Discordava das argumentações da presidente, professora e juíza de direito, Antonia Carvalho Midlej, com vistas à execução de um eficiente projeto cultural que trouxesse ganhos para as letras comunitárias e com isso reforçasse o conceito da entidade em elevado patamar, entre os pares e concidadãos da progressista cidade. 

          Com o dedo em riste, de repente surgiu rancoroso para agredir à ilustre diretora de comunicação da instituição, a estimada confreira Mabel Rocha, dublê de cineasta e psicanalista, acusada por ele de centralizadora do blog, sem competência técnica para administrá-lo, atuando em causa própria na divulgação das matérias. Na última sessão, descontrolou-se de tal maneira que partiu para agredir com sopapos à presidente   e à diretora de comunicação. Foi impedido por vários confrades de consumar o crime de lesão corporal de natureza grave nas duas confreiras.

         Foi convidado para que se retirasse do recinto, se resistisse iam chamar a polícia. Bufando, esperneando, retirou-se a muito custo. Atirou cobras e lagartos para todas as direções. “Vocês me pagam”, jurava, o rosto vermelho, a cabeçorra como se fosse a de um gigante, de tanto que cresceu nessa hora de revolta e fúria. Não teve mais ambiente para frequentar a academia, mas não pediu desligamento da entidade, não demonstraria tamanha fraqueza perante aquela cambada de cretinos, tropa de calhordas, narcisistas contumazes.   Resolveu construir o seu blog, para a divulgação de seus textos e, ao mesmo tempo, numa perseguição canina desenfreada, desferir mordidas e unhadas contra a inoperante Academia de Letras de Bibocas do Japará. 

         Caluniou, injuriou, despejou infâmias contra os integrantes do sodalício pomposo, de cabo a rabo incompetente e inoperante, acentuava.  Sem um livro publicado vários de seus membros, os que tinham editado um ou outro livreto apenas das páginas emergiam ideias provincianas, baseadas na argumentação pueril, sem condimento filosófico, já nascidas mortas, expressas em escrita pobre, ressaltava no blog “O Porrete”. Adiantava que esses palhaços  vestidos de acadêmicos  terminavam suas falas na sessão  com o elogio da glória da tão falada imortalidade, que não era nada de imortalidade, nem coisa alguma, já que todos nós só tínhamos um destino aqui na terra, carimbado pela indesejada, sermos comidos por  uns bichinhos que nos esperam debaixo da terra para o banquete costumeiro.

            “Espelho, espelho meu, existe alguém no mundo mais infeliz do que eu?”

             Silvano Fontana escutou daquela vez não a resposta conhecida, mas os ruídos do espelho se partindo e caindo aos pedaços no quarto. Sem trégua do perguntador aflito, o velho e leal interlocutor não suportou mais aquela indagação repetitiva e enfadonha, para a qual a resposta era uma só, não podia ser outras por razões de evidência categórica, que dava na vista.

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 Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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