7 de abril de 2020
Caros amigos,
Desde o início de meu ministério como bispo de uma diocese,
parecia que todos os anos, à medida que as celebrações do Natal e da Páscoa se
aproximavam, havia um evento profundamente triste na diocese ou uma crise
difícil de enfrentar pelo bem da diocese. Assim, enquanto eu antecipava com
alegria as celebrações dos grandes mistérios de nossa salvação, algo acontecia
que, do ponto de vista humano, colocava uma nuvem negra sobre as celebrações e
questionava a alegria que elas inspiravam. Certa vez, quando comentei com um
irmão bispo sobre essa experiência terrivelmente angustiante, ele simplesmente
respondeu: “É Satanás, tentando roubar sua alegria”.
Faz sentido que Satanás, a quem Nosso Senhor descreve como
um “homicida desde o principio, […] mentiroso e o pai da mentira” (Jo
8, 44), queira esconder de nossos olhos as grandes realidades da Encarnação e
da Redenção, queira distrair-nos dos ritos litúrgicos através dos quais não
apenas celebramos essas verdades, mas também recebemos as graças imensuráveis e
incessantes que elas conquistaram para nós. Satanás quer nos convencer de que a
perda de um ente querido e a morte, a tristeza e o medo que naturalmente as
acompanham mostram que Cristo é falso, falsificam a sua Encarnação redentora e
mostram nossa fé e a alegria que ela naturalmente inspira como mentirosas.
Quem é falso é Satanás. Ele é o mentiroso. Cristo, Deus
Filho, de fato tornou-se homem, sofreu a mais cruel Paixão e Morte a fim de
redimir nossa natureza humana, restaurar-nos a verdadeira vida, a vida divina
que supera os piores sofrimentos e até a própria morte, e conduzir-nos com
certeza e segurança para o nosso verdadeiro destino: a vida eterna com Ele.
São Paulo, diante de tantas provações profundamente
desencorajadoras ao longo de seu ministério apostólico, culminando com seu
martírio em Roma, escreveu aos cristãos de Colossos: “Agora me alegro nos
sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo
na minha carne, por seu corpo que é a Igreja” (Col 1, 24). Para ele, como
deveria ser também para nós, sofrer com Cristo pela Igreja, pelo amor de Deus e
ao próximo, é a fonte inatacável e infalível de nossa alegria. É a mais alta
expressão de nossa comunhão com Cristo, Deus Filho Encarnado, compartilhando
com Ele o mistério do amor divino de Deus — Pai, Filho e Espírito Santo. A vida
de Cristo, a graça do Espírito Santo derramada do Coração de Cristo para
habitar em nossos corações, inspira e fortalece-nos a abraçar a perda de alguém
e a morte com o seu amor que os conquista e os transforma em ganho eterno e
vida sem fim. Nossa alegria, então, não é um prazer ou emoção superficial, mas
o fruto do amor que é ‘forte como a morte’, que “as torrentes não poderiam
extinguir […] nem os rios o poderiam submergir” (Ct 8, 6-7).
Nossa alegria não tira o aguilhão agudo da perda e da morte,
mas, com confiança e coragem, as enfrenta como parte do combate ao longo da
vida do amor que somos chamados a travar durante esta vida — afinal, pela graça
de Deus, somos verdadeiros soldados de Cristo (2 Tm 2, 3) — na certeza da
vitória da vida eterna. Assim, no fim de sua vida, São Paulo poderia escrever a
seu filho espiritual e companheiro no pastoreio do rebanho, São Timóteo: “Quanto
a mim, estou a ponto de ser imolado e o instante da minha libertação se
aproxima. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé.
Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará
naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a
sua aparição” (2 Tm 4, 6-8 ).
Amamos Nosso Senhor, amamos a Encarnação redentora pela qual
Ele está vivo por nós na Igreja, e, portanto, estamos felizes por lutar o bom
combate com Ele, em continuar a corrida, não importando as provações que
enfrentamos, e em manter a fé quando o Pai da Mentira nos tenta a duvidar de
Cristo e até a negá-Lo.
Talvez Satanás nunca tenha tido uma ferramenta melhor do que
o coronavírus para roubar nossa alegria de celebrar os dias mais sagrados do
ano, os dias em que Cristo ganhou para nós a vida eterna. Como ele gostaria de
extirpar a santidade da única semana do ano que é conhecida simplesmente como
Semana Santa! A atual crise sanitária internacional causada pelo coronavírus
(COVID-19) continua sua trágica colheita de mortes, gerando profunda tristeza e
medo no coração humano. Certamente, Satanás está usando o sofrimento que
assolou tantos lares, bairros, cidades e nações a fim de nos fazer duvidar de
Nosso Senhor e da Fé, da Esperança e da Caridade, que são seus grandes
presentes para nós em nossa vida diária. O efeito da intenção assassina de
Satanás e de suas mentiras aumenta quando estamos mais distantes do Senhor,
quando consideramos sua vida dentro de nós como assegurada, quando até O
abandonamos ao buscar prazeres, interesses ou sucessos mundanos.
Na própria Igreja, temos sido testemunhas da omissão em
ensinar, sobretudo, a Cristo como Senhor. Quantos hoje sofrem profundamente de
um medo inútil porque esqueceram ou até rejeitaram o Reinado do Coração de
Jesus em seus corações e lares. Lembrem-se das palavras de Nosso Senhor a
Jairo, que procurou a ajuda de sua filha moribunda: “Não temas; crê
somente” (Mc 5, 36). Quantos hoje estão sem esperança, porque acham que a
vitória sobre o mal do coronavírus (COVID-19) depende totalmente de nós, porque
se esqueceram de que, embora devamos fazer tudo o que podemos humanamente para
combater um grande mal, somente Deus pode abençoar nossos esforços e nos dar a
vitória sobre as privações de todo tipo e a morte. É tão triste ler documentos
— mesmo documentos da Igreja — que pretendem tratar das dificuldades mais
importantes que enfrentamos e não encontrar neles nenhum reconhecimento do
Senhorio de Cristo, da verdade que dependemos completamente de Deus para nosso
ser, por tudo o que somos e tudo o que temos, e que, portanto, a oração e o
culto divino constituem o nosso primeiro e mais importante meio de combater
qualquer mal.
Alguns dias atrás, um jovem católico me disse, como se fosse
uma evidência, que este ano ele não celebraria a Páscoa por causa do coronavírus.
Se as alegrias da celebração da Páscoa fossem simplesmente uma questão de
sentir-se bem, entenderia o sentimento dele. Mas a alegria da Páscoa está
enraizada na verdade eterna, na vitória de Cristo sobre o que claramente se
parecia com a Sua aniquilação, a vitória conquistada em sua natureza humana
para obter a mesma vitória em nossa natureza humana, quaisquer que sejam as
dificuldades que possamos estar sofrendo. Se crermos em Cristo, se confiarmos
em suas promessas, devemos celebrar com alegria sua grande obra da Redenção.
Celebrar os mistérios de Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo não é uma falta
de respeito ao sofrimento de tantos hoje, mas reconhecer que Cristo está
conosco para superar nossos sofrimentos com seu amor. Nossa celebração é um
farol de esperança para aqueles cujas vidas são severamente provadas e os
convida a depositar sua confiança em Nosso Senhor.
Sim, a Semana Santa deste ano é muito diferente para nós. O
sofrimento associado ao coronavírus levou a uma situação em que muitos
católicos, durante a Semana Santa, não terão acesso aos Sacramentos da
Penitência e à Sagrada Eucaristia, que são os nossos extraordinários, mas
também ordinários encontros com Cristo ressuscitado, de maneira que Ele possa
nos renovar e fortalecer com sua vida. Mas continua sendo a Semana mais santa
do ano, pois comemora os eventos pelos quais vivemos em Cristo, pelos quais a
vida eterna nos pertence, mesmo diante de uma pandemia, de uma crise sanitária
mundial. Peço-lhes, portanto, que não cedam à mentira de Satanás, que deseja
nos convencer de que este ano não temos nada para comemorar durante a Semana
Santa. Não, temos tudo para celebrar, pois Cristo nos precedeu em todos os
sofrimentos e agora nos acompanha em nossos sofrimentos, para que permaneçamos
fortes em seu amor, o amor que vence todo mal.
Hoje celebramos o Domingo de Ramos, quando Cristo entrou em
Jerusalém, conhecendo plenamente a Paixão e Morte que O esperava. Jesus sabia
quão efêmera era a sua acolhida, uma acolhida apropriada ao Rei do Céu e da
Terra, mas superficial, porque aqueles que a estenderam tinham apenas uma
compreensão mundana da salvação que Ele veio trazer para nós. Eles não estavam
prontos para ser um com Cristo no estabelecimento de seu Reino eterno através
dos eventos de sua Paixão e Morte. Após o Domingo de Ramos, cada dia da Semana
Santa é justamente chamado de santo porque é um episódio da firmeza de Cristo
ao abraçar a sua missão salvadora rumo ao seu ponto culminante.
Consigam um tempo para meditar sobre a acolhida verdadeiramente
régia que ofereceram a Cristo em seu coração e em seu lar. Leiam novamente o
relato da entrada d’Ele em Jerusalém e de como, depois de sua entrada
triunfante, Ele chorou sobre Jerusalém com estas palavras: “Jerusalém,
Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados!
Quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos
debaixo de suas asas… e tu não quiseste!” (Mt 23, 37).
Se vocês ou seus lares estiverem longe de Nosso Senhor,
recordem-se de como Ele deseja estar perto de vocês, ser o hóspede constante de
seu coração e de seu lar.
Permaneçam com Cristo durante toda a Semana Santa. De
maneira particular, façam da Quinta-feira Santa um dia de profunda gratidão
pelos sacramentos da Sagrada Eucaristia e pelo Santo Sacerdócio instituído por
Nosso Senhor na Última Ceia. Façam da Sexta-feira Santa um dia de silencio,
durante o qual sejam praticados atos penitenciais para entrar mais
profundamente no mistério do sofrimento e da morte de Cristo. Na Sexta-feira
Santa, encham-se de gratidão pelos sacramentos da penitência e pela unção dos
enfermos. No Sábado Santo, façam vigília com Nosso Senhor, louvando-O e
agradecendo-Lhe pelo dom de sua graça em nossas almas através da infusão do
Espírito Santo a partir de seu glorioso Coração trespassado. Meditem
especialmente como sua graça está dentro de suas almas pelos Sacramentos do
Batismo, da Confirmação e da Sagrada Eucaristia. Durante todos esses dias,
reflitam e agradeçam a Deus pelo dom do Sacramento do Santo Matrimônio e seus
frutos, a família — a “Igreja doméstica” ou pequena igreja do lar —, o primeiro
lugar em que aprendemos a conhecer a Deus, a oferecer-Lhe a oração e o culto e
a disciplinar nossas vidas de acordo com sua Lei.
Se não puderem participar dos ritos litúrgicos nesses dias
mais sagrados, o que é realmente uma grande privação, pois nada pode substituir
o encontro com Cristo através dos sacramentos durante esses dias, esforcem-se
em seus lares para participar na Liturgia Sagrada através do desejo de estar na
companhia de Nosso Senhor, especialmente no mistério de sua obra salvadora. Nosso
Senhor não espera de nós o impossível, mas que façamos o melhor que pudermos
para estar com Ele durante esses dias de sua graça eficaz.
Existem muitas maravilhosas ajudas para nutrir esse santo
desejo. Antes de tudo, há um rico tesouro de oração na Igreja. Por exemplo, a
leitura das Escrituras Sagradas, os Salmos Penitenciais, especialmente o Salmo
51 [50] e o relato da Paixão de Nosso Senhor nos quatro Evangelhos, a devoção
ao Sagrado Coração de Jesus, a meditação sobre os mistérios da nossa fé através
da recitação do Santo Rosário, especialmente dos Mistérios dolorosos, as
Ladainhas do Sagrado Coração de Jesus, da Santíssima Virgem (de Loreto), de São
José e dos santos, a Via Sacra — que também pode ser feita em casa usando as
imagens das catorze estações estampadas em um livro de orações ou sobre um
objeto sagrado —, o Terço da Divina Misericórdia, visitas a santuários, grutas
e outros lugares consagrados a Nosso Senhor e aos mistérios da Encarnação
Redentora, e a devoção aos santos que foram poderosos para nos ajudar,
especialmente São Roque, protetor contra as pestilências.
Em nossa época, temos o privilégio de ter acesso, através
dos meios de comunicação, aos ritos sagrados e aos atos públicos de devoção,
enquanto são celebrados em certas igrejas, especialmente nas igrejas de
mosteiros e conventos nos quais toda a comunidade religiosa está participando.
Observar um rito sagrado que é transmitido não é evidentemente o mesmo que
participar diretamente dele, mas se é tudo o que nos é possível fazer,
certamente é agradável a Nosso Senhor, que nunca deixará de nos encher com sua
graça em resposta ao nosso humilde ato de devoção e amor.
Em qualquer caso, a Semana Santa não pode ser para nós como
outra semana qualquer, mas deve ser marcada pelos sentimentos mais profundos de
fé em Cristo, que é a nossa única salvação. Os sentimentos de fé durante os
dias mais sagrados são igualmente sentimentos de profunda gratidão e amor. Se a
gratidão e o amor não puderem ter sua expressão mais alta através da
participação na Sagrada Liturgia, que eles a encontrem na devoção de seus
corações e de seus lares. Comemorando com Cristo, com sua Mãe Santíssima e com
todos os santos os eventos do Tríduo Sagrado, contemplamos o mistério de sua
vida dentro de cada um de nós. Todo o tempo gasto em oração e devoção diárias,
meditando sobre a Paixão de Nosso Senhor, nos ajudará a estar unidos da melhor
forma possível a Ele durante esses dias mais sagrados. Quanto o sofrimento do
tempo presente deve nos ensinar sobre o dom incomparável que é a Sagrada
Liturgia e os Sacramentos!
Para encerrar, quero assegurar-lhes que suas intenções estão
hoje em minhas orações e permanecerão nelas durante toda a Semana Santa, de
modo especial durante o Tríduo Sagrado da Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado
Santos. Que todos nós possamos fazer companhia a Cristo com a mais profunda fé,
esperança e caridade, ao celebrarmos os dias mais sagrados nos quais Ele
sofreu, morreu e ressuscitou dentre os mortos para nos libertar do pecado e de
todo mal e obter para nós a vida eterna. Que nossa observância da Semana Santa
este ano seja nossa arma poderosa no contínuo combate ao coronavírus
(COVID-19). Em Cristo, a vitória será nossa. “Não temas; crê somente” (Mc
5, 36).
Raymond Leo Cardeal BURKE
5 de abril de 2020, Domingo de Ramos
_____________
(Tradução do inglês por Hélio Dias Viana).
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