Um relógio pendulava dentro de sua cabeça, como pancadas de
martelo. Da sala onde se encontrava só, emanava cheiro de mofo misturado com o
odor da cera do assoalho; uma raja de luar infiltrava-se por uma fresta da
janela confrontada com o poente, formando uma claridade pálida, quase
imperceptível. Como sombra apareciam em sua imaginação os rostos de Elsa e
Catarina, renitentes, peculiares nos gestos, tonalidade de voz, os sorrisos,
agora distantes, sem pancadas intrigantes de um relógio antigo.
“Que culpa tenho em toda essa história? Tentaria uma solução?”
Tudo confuso. Receava maiores complicações. “Saltei muros, troncos e barrancos.
Só faltei roubar, coisa que meu pai nunca me ensinou. E agora? Toma aí, coisa
tonta, pau no lombo, tristeza, recalques, solidão que não acaba nunca, lágrimas
por dentro e até pela face, a alguns momentos; coração aflito, sem carinho ou
uma palavra de alento”. Abriu a janela por onde entrava um raio de luar; viu a
lua se escondendo entre nuvens espessas turvando a cúpula celeste, como se fora
um eclipse.
As pancadas do
relógio recrudesciam e um vento frio soprava vindo nem sabia de que lado. “Elza,
Catarina”. Era uma consumição em seu juízo. Vinha-lhe uma série de perguntas
sem nexo, sim sentido. Procuraria um médico, um psicólogo ou mesmo um
psiquiatra. “Os doutores não curam males da alma. Os espiritualistas também não”.
Era um cético. Fechou a janela, encolhendo-se ante a rajada do vento frio. “Minha
mãe estaria aflita com o meu tormento. Nem podia me ver calado: ‘Está sentindo
alguma coisa’, perguntava-me apalpando meu peito, afagando minha cabeça. Eu
sabia que ela rogava a Deus e aos santos de sua crença um socorro para mim.
Acalmava-lhe com um sorriso sutil: - não estou sentindo nada”.
As figuras de Elza e Catarina voltavam a sua cabeça
embaralhada, separadas, juntas, contrastando-se, resmungando, às vezes
ameaçando agredi-lo, soltando palavras ofensivas, investindo com dedo em riste,
frente a frente. Lembrava do carinho dedicado às duas, do sacrifício do
dia-a-dia, somando coisas, diminuindo outras, apertando a fronte às vezes
atormentada, arrepiando-se com deveres acumulados.
Elza, Catarina. “Você é um imbecil”, “Quero um vestido novo
para o aniversário do doutor Mário”, “Estou precisando de um colar de ouro e de
uma pulseira”.
Quanto
compromisso, quanta humilhação ante olhares exigentes, tantas mãos exigentes!
“Por que faziam essas coisas comigo?” Num ímpeto, saltou pela janela e ganhou a
rua, como gente maluca. Pensou informar-se onde encontraria uma clínica. Queria
um médico urgente, um psicólogo, um psiquiatra competente que lhe afastasse
aqueles pensamentos, aquelas lembranças confusas, as sombras de Elza, de
Catarina. Pensou num sanatório bem aparelhado, com psiquiatras, medicamentos
eficazes que o tornassem lúcido e razoável. Não encontrou nenhum sanatório nem
psiquiatra. Sem uma alternativa retornou para casa; saltou novamente a janela
que ficara encostada e dirigiu-se para o quarto. “Se Elza e Catarina estivessem
aí!”. Quando saiu para a rua pensando em procurar um médico, as duas
afastaram-se de sua cabeça, daí imaginá-las esperando-o de volta, Elza sentada
nos pés da cama, Catarina do outro lado, encostada à cabeceira, nenhum diálogo
entre as duas que se odiavam, mas na espreita. Com essas ideias empurrou a
porta e entrou, acendeu a lâmpada, panhou um lençol fino, uma espátula e
começou a vedar as fendas da porta entre as dobradiças para aliviar-se das
pancadas do relógio na sala vizinha, badalando entre figuras que lhe
atormentavam o juízo.
Lembrando de suas trajetórias durante o dia, admitiu
encontrar-se atrapalhado; verdade que as pancadas do relógio agravavam a
situação que já era tensa ante as imagens de Elza e Catarina. Melhor seria dar
um fim ao relógio, trocar por outro sem pêndulo, silencioso. “Será que Elza tem
ainda aquele relógio de pulso?”. Pensou assim antes de saltar a janela, quando
saiu para a rua, à procura de um médico, de uma clínica. De volta, isolou o
relógio, abafando-o na sala vizinha. Panhou um espanador e sacudiu o leito da
cama forrada com um lençol azul florado de amarelo. Deitou-se depois, sutil,
sem vontade de dormir; queria, antes, esquecer Elza, Catarina. Se não
conseguisse dormir, sairia pela manhã à busca de um médico que iria exigir-lhe
detalhes, “conte sua história”.
O que iria contar? Somente falar sobre as duas, um histórico
comprido, aí por volta de dez anos entre atalhos e arrodeios, mais ou menos,
nunca no meio termo das coisas, como fazia sua mãe quando era menino,
repassando a farda enxovalhada da semana para ganhar tempo e sabão; esconder
mal feitos ante o pai cansado e às voltas com mil obrigações em casa.
Passou a noite se virando de um lado para outro, a cabeça
com sensação de zonzura, os ouvidos chiando, as pernas cansadas.
A primeira coisa a fazer depois que o sol saísse seria
procurar uma clínica especializada em assuntos sobre loucura. Tinha a certeza
que estava ficando doido.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas
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