(Bahia, 1965 - O Casamenteiro)
Fomos
padrinhos, Zélia e eu, do casamento de João Gilberto com Astrud, o casal se
separou nos Estados Unidos para onde Joãozinho viajara a fim de participar de
um show, obteve tamanho sucesso que ficou por lá anos a fio.
No dia de seu
embarque, indo para o aeroporto passou por nosso apartamento para o abraço de
despedida, vestia roupa leve, própria para o verão carioca, em new York a
crueza do inverno era manchete nos jornais. Ao vê-lo tão desagasalhado retirei
do guarda-roupa um sobretudo usado: vista-o ao desembarcar do avião senão vai
morrer de frio, pegar pneumonia. Essa a minha contribuição para o êxito do
cantor nos States, o sobretudo que o salvou da pneumonia dupla.
Contribuí
também para seu casamento com Miúcha*: do primeiro matrimônio fui testemunha,
no segundo funcionei de casamenteiro. Um dia recebi na Bahia telefonema de
Joãozinho, ligava de New York, aflito como sempre, não mudara, continuava o
mesmo.
-
Jorginho, você é muito amigo de Sérgio Buarque de Holanda, não é?
- Sou,
sim, Joãozinho, por quê?
Figura das
mais fascinantes da comparsaria intelectual, Sérgio concedeu-me o privilégio de
sua intimidade, coloquei-o de personagem em “O Capitão de Longo Curso”, assim
homenageio aqueles que mais estimo e prezo, pondo-os nas páginas dos meus
romances. Juntos, durante um congresso de literatura em Recife, fundamos uma
Igreja de São Pedro dos Clérigos a Benemérita e Venerável Ordem do Hipopótamo
Azul, dedicada ao trato das donzelas, e criamos a teoria das baquianas, as
balzaquianas quando baqueiam, baseada na agitação das literatas locais que
cortejavam Eduardo Portela, o sedutor. Na época do telefonema o mestre historiador
se vangloriava de ser o pai de Chico Buarque, compositor que estourara nas
paradas de sucesso.
-
Jorginho, estou apaixonado pela filha dele, a Miúcha, irmã do Chico. Miúcha
anda por aqui, ela também gosta de mim, queremos nos casar, mas temos medo que
Sérgio se oponha, você sabe como é, deve ter ouvido horrores a meu respeito. Queria
que você falasse com ele, pedisse a mão de Miúcha em casamento, para mim. Diga
a ele que não sou tão ruim como dizem por aí.
Habituado
a me envolver com a vida de Joãozinho, prometo interferir - depressa, daqui a
uma hora telefono de novo para saber o resultado. Desligara agoniado, eu ainda
procuro o número de Sérgio no caderno de telefones, Joãozinho volta a ligar: eu
‘tava vexado que não mandei um beijo para Zelinha. Vexado, Joãozinho.
Disco o
número paulista, Amélia atende, trocamos gentileza, desejo falar com o vosso
ilustre consorte, Sérgio vem ao telefone, sabendo que sou eu, começa a imitar
sotaque holandês, é de morrer de rir, mas eu me punho sério para lhe informar:
- Te
telefonei para pedir a mão de tua filha Miúcha em casamento.
- Hem? Que
história é essa? - Abandona o acento batavo, coloca-se em posição de defesa,
que peça estou querendo lhe pregar?
- Não é
para mim, é para João Gilberto, estão apaixonados, querem se casar, ele pediu
que te dissesse que não é tão ruim assim, tão má pessoa como consta por aí, não
deves acreditar nas más línguas...
- Que me
contas? É brincadeira ou falas a sério?
Falo a
sério, relato a conversa de Joãozinho, telefonema em dólares de New York,
repetida, esquecera o beijo para Zélia. Empolga-me a paixão dos dois cantores,
coisa linda, faço o elogio do candidato a genro e o faço com amor. De Joãozinho
sei o direito e o avesso, do menino de Juazeiro nas barrancas do São Francisco
ao músico ainda desconhecido, lutando no Rio em dias de aperto, sou seu
parceiro, fiz a letra do Lamento de Marta, composto para o filme de Alberto D’Aversa**.
Quando solteiro, Joãozinho aparecia à noite no apartamento da Rodolfo Dantas,
trazia o violão, ficava até a madrugada, cantando. Acontecia que Zélia e eu,
cansados, íamos dormir, Joãozinho prosseguia em companhia de João Jorge, menino
ainda, privilegiado. João Gilberto tocava, cantava, tendo como ouvintes apenas
o moleque e o pássaro sofrê: vivia solto na sala e assobiava as músicas que
Joãozinho dedilhava ao violão.
Sérgio
escuta em silêncio minha lenga-lenga, a proclamação das virtudes de Joãozinho,
gênio musical, amigo terno, pessoa amorável. No dia seguinte toma o avião para
New York, vai estudar o assunto in locum, apaixona-se pelo candidato, só podia
acontecer.
Para
terminar, um post-scriptum: já levava João Gilberto vários anos residindo nos Estados
Unidos quando um dia me apareceu em casa um portador trazendo encomenda enviada
pelo músico: um sobretudo novo em folha, soberbo, eu o usei longo tempo, ainda
o tenho. Ou será que o dei a João Jorge, o ouvinte solitário, o privilegiado?
*Miúcha Heloísa Buarque de Holanda, cantora.
**Alberto d’Aversa, diretor de teatro de origem italiana.
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
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“Os
radicais da negritude nacional são mulatos brasileiros, uns mais escuros,
outros mais claros, cujo único ideal na vida é serem negros norte-americanos,
de preferência ricos.”
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da
ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido
pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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