20 de dezembro de 2018
♦ Péricles Capanema
Faz anos que das ruas anda quase sumido o realejo, por isso
é mais seguro — atenção, jovens! — rápido lembrete. Observado por alguns, o
tocador gira a manivela e o ambiente em volta se recreia do som de poucas e
repetidas músicas. No Velho Mundo tem mais prestígio a representação; compõe,
peça valiosa, paisagens urbanas da cultura popular. O “orgue de Barbarie” [fotos]
faz parte da cena pitoresca da Paris sonhada por multidões (lá, sem o
irrequieto papagaio tirador da sorte). Uma das explicações para a origem da
expressão “órgão de Barbárie” seria a sonoridade tosca do realejo que
lembraria, entretanto, os grandes órgãos das catedrais. Entre nós, o realejo e
o papagaio por gerações encantaram crianças e seduziram adultos.
Viro a página. Na linguagem comum, realejo tem emprego
pejorativo, bastante usado: a repetição monótona de um mesmo tema: “Aquele
sujeito é um realejo”.
Entre realejo e avestruz, fico com o primeiro. Diz a lenda
(é lenda mesmo), o avestruz enfia a cabeça na areia quando pressente o perigo.
À vera, a ave encosta o pescoço e a cabeça no chão, escuta melhor algum
predador e fica menos exposta. Contudo, o uso consagrou a frase, diante do
perigo, o avestruz enfia a cabeça no chão.
De novo, escolho ser tocador de realejo a fechar os olhos
diante do felino que avança contra o avestruz (no caso, todos nós). Vou apenas
sublinhar e, quem sabe, ampliar coisas que já disse. “Ideia dita uma só vez,
morre inédita”, avisava Nelson Rodrigues.
São duas matérias dos últimos dias. Em 15 de dezembro, Taís
Hirata na “Folha de S. Paulo” descreveu novas possibilidades de aplicação de
capitais chineses no Brasil em minucioso artigo intitulado “Após investir
em energia, chineses miram saneamento básico no Brasil”.
De outro modo, segundo o texto, chineses, melhorando grupos
chineses, vão comprar empresas estatais do setor de fornecimento de água e
coleta de esgoto (aqui, também, o tratamento de resíduos). Ou comprar obras
paralisadas, terminá-las e explorar comercialmente os serviços.
Um dos grupos chineses interessados é o Fosun, gigantesco
conglomerado econômico. Segundo informações coletadas na rede (minha maior
fonte), tem maioria de capital privado. Um dos proprietários, Guo Guangchang [foto],
às vezes chamado de Warren Buffett chinês, faz parte do Conselho Político
Consultivo do Povo Chinês, uma espécie de Senado dominado pelo Partido
Comunista Chinês. De outro modo, é empresa próxima do governo. Preocupa. A
matéria da Folha nada traz da proximidade do grupo com a tirania imperialista
de Pequim.
Três outros grupos chineses, informa Taís Hirata, têm
interesse em comprar empresas ligadas ao saneamento básico. O primeiro deles é
o CCCC (China Communications Construction Company), sociedade anônima, com
faturamento anual de aproximadamente 70 bilhões de dólares. É estatal chinesa;
de outro modo, está em sintonia com as diretrizes do Partido Comunista Chinês
(PCC). Nenhum diretor é indicado sem a anuência do partido. O segundo grupo é o
Datang, outra estatal chinesa, com faturamento anual em torno 30 bilhões de
dólares. O terceiro grupo é o CGGC (China Gezhouba Group Company Limited),
também empresa estatal, com receitas anuais em torno de 15 bilhões de dólares.
O artigo nada diz que dos quatro grupos, três pertencem ao governo chinês, de
outro modo, agem em sintonia com as diretrizes políticas do Partido Comunista
Chinês. Desde há anos, esse é o padrão usual da imprensa brasileira, esconde
informações essenciais para o juízo equilibrado e objetivo do leitor.
Deixo para trás as informações do artigo de Tais Hirada,
planos para o futuro, e me detenho em editorial do Estadão, 9 de dezembro,
intitulado “O peso da China”, análise do presente. Nos primeiros onze
meses de 2018, o Brasil acumulou superávit comercial de 51,7 bilhões de
dólares. Desse total, 26,2 bilhões de dólares vieram do comércio com a China,
50,7%. Em 2017, 30,7% do saldo comercial vieram das trocas com a China. Dos 220
bilhões exportados nos onze primeiros meses de 2018, 58,8 bilhões foram para a
China, 28,8% do total. Constata o editorial: “Só esses números bastariam
para mostrar a crescente influência da China sobre a economia brasileira”.
A situação é mais preta: “Há outro aspecto que resulta
em laços econômicas mais fortes. É a presença cada vez maior do capital chinês
nos investimentos estrangeiros.” Capital chinês (sic!). Desde 2003 até
hoje, segundo a Secretaria de Assuntos Internacionais (SEAIN) do Ministério do
Planejamento em 269 projetos houve investimentos chineses anunciados e
confirmados de 124 bilhões de dólares. Desse total, segundo o Conselho
Empresarial Brasil-China, 87% foram de origem estatal, 13% de origem privada.
Vou, de novo, escrever o que ninguém ou quase ninguém põe no
papel com clareza: esses 87% é dinheiro de empresas estatais chinesas, que
trabalharão pelos objetivos do PCC, e cujos diretores se alinham sempre com a
estratégia do partido. Os 13% restantes, via de regra, são de empresas que
acertam o passo com o governo chinês. Não custa lembrar, de momento, a China
luta com os Estados Unidos por áreas de influência, situação que está se
refletindo em disputas comerciais e, na América Latina, apoia ativamente Cuba,
Venezuela e Bolívia.
A própria linguagem eufemística da imprensa (investimento
chinês, grupos chineses, capitais da China), que atenua a realidade bruta
(dinheiro cujo dono é o governo chinês, longa manus do PCC), é triste
indício de que o Brasil já experimenta incipientes reações de protetorado. A
esquerda não dá um chiadinho contra a avalanche das estatais chinesas na
economia brasileira; ela, agora, silenciosa, mas historicamente tão barulhenta
nas diatribes contra o capital estrangeiro. Não adianta fechar os olhos para a
realidade. Ela é o realejo estridente, óbvio ululante.
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