Artigo em jornal, na página de opinião, tem compromisso com
fatos, notícias e acontecimentos. Ao menos, para refletir e analisá-los. É
diferente de literatura. Nessa, a primazia absoluta é da linguagem, na
exploração de suas possibilidades, para revelar seu poder latente na busca de
sentido de se estar no mundo. Ou o encantamento e os impasses da dor diante
dele. Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior, já ensinou: “Não faças
versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia.”
É nas palavras que a poesia vai buscar sua força e poder.
Sugere ainda o poeta: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem
mil faces secretas sob a face neutra.”
Mas jornal se faz com fatos. E eles se distribuem por todos
os assuntos do mundo e do nosso tempo. Vão das dificuldades geradas pelo preço
de combustíveis e protestos dos caminhoneiros à festa do casamento real em
Windsor. Da revelação de novas frentes de corrupção no INSS ou na merenda
escolar à escalada irrefreável da violência — da Rocinha à Cidade
Universitária, da execução de Marielle Franco ao bebê baleado no colo da mãe.
Fatos que parecem isolados se arrumam em constelações que lhes dão novos
significados. Passam da pré-campanha eleitoral e das idas e vindas de recursos
e embargos nos tribunais à divulgação dos mais recentes dados numéricos. Volta
e meia, nesse processo, exigem palavras novas.
E elas surgem. Às vezes, em modismos artificiais, “lacrando”
agora e destinados a durar pouco. Outras, na rica e original criação popular de
potência duradoura. Os meios acadêmicos volta e meia trazem ou tentam impor
artificialismos como “empoderamento” — criticado por tantos ouvidos sensíveis e
já acusado de ser um “embutido” vocabular ou perversão linguística.
Estes últimos dias nos brindaram com duas contribuições
interessantes nesse terreno de reapropriação léxica. Novas faces secretas
reveladas sob a face neutra de que falava o poeta, de vocábulos “sós e mudos/
em estado de dicionário.”
Uma delas veio de um órgão que costumamos associar a números
e não às letras. Rapidamente ganhou colunas de analistas e relatórios de
economistas. Mas já o poeta ensinara que “sob a pele das palavras há cifras e códigos”.
O IBGE amplifica o sentido de “desalentados” e mostra que, em quatro anos,
subiu quase 200% o número de brasileiros que desistiram de procurar emprego
porque chegaram à conclusão de que não vão mesmo encontrar nada. Dentro do
estarrecedor descalabro nacional — com seu jovem e crescente contingente
nem-nem, que nem estuda nem trabalha —, ganha visibilidade e nome uma imensa
parcela de nossa população. É urgente buscarmos saídas racionais, num debate
adulto, que não escamoteie os dados e fatos da realidade, nem fique tentando
disfarçá-la com retórica oportunista e vazia, cuja única serventia talvez seja
adiar soluções necessárias e perpetuar benefícios ou privilégios de quem tem
poder.
Outra boa palavra surgida agora, a fazer pensar, brotou na
cobertura do casamento na família real britânica. A noiva não se contenta em
ser classificada como afrodescendente ou negra, como aconteceu com Barack Obama
ao assumir a Presidência americana há alguns anos — sempre a inutilmente tentar
lembrar que sua mãe era branca e seu pai, africano. Mezzo a mezzo... A nova
duquesa de Sussex, intensamente ciente de cada indício simbólico nos mínimos
detalhes da cerimônia, faz questão de se identificar como “birracial”,
assumindo a mistura afro-caucasiana. No Brasil, talvez “multirracial” seja uma
palavra mais verdadeira para nos descrever, ao incorporar indígenas — sem
mistificação, como ainda Drummond aconselhava a recebermos as ordens da vida.
Já abandonamos o rico termo “favela” por “comunidade”,
palavra que acentua laços importantes e força coletiva, mas traz perdas
conceituais, ao relegar ao esquecimento uma série de conquistas culturais e um
tecido histórico substancial, em prol de terminologia mais abstrata, mais
ligada a uma classificação de capilaridade social americana. Já estamos fazendo
campanhas para substituir a palavra “escravo” por “escravizado”, como se o
número maior de sílabas e o aspecto de particípio passado, ao se afastar do
substantivo concreto, mudasse o horror, o sofrimento e a vergonha do sistema
escravocrata que nos fez como país e a que foram submetidos povos inteiros no
correr da História. E assim seguimos, mesmo desalentados e multirraciais, a
patrulhar palavras, discutindo o supérfluo e acessório, e deixando de encarar o
essencial.
Pode parecer uma bobagem, mas acho que, se conseguirmos nos
pensar como birraciais e multirraciais, estaremos mais próximos de ver quem
somos e entender o imenso valor que tem essa identidade, os caminhos que ela
pode nos abrir em meio às dobras do racismo persistente. Mais uma vez, com
Drummond, podemos constatar que há calma e frescura na superfície intacta das
palavras. “Com seu poder de palavra/ e seu poder de silêncio”.
O Globo, 26/05/2018
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Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL,
eleita em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida
em 29 de agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia
Brasileira de Letras em 2012 e 2013.
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