Os
sonhos
“Qual a
origem dos sonhos? Coisa do espírito ou cópia do que vemos acordados?”.
Indagava-se assim preocupado com uns sonhos, noites a fio, com Zulmira, vizinha separada do marido.
Vinte e cinco janeiros, como a própria gostava de dizer referindo-se à sua
idade.
Ora, ele a
via muitas vezes todo dia – quando saía para o trabalho, na volta, à noite, na
janela, sentada no passeio, perneando pela vizinhança. Uma estampa de um metro
e setenta, seios robustos, pernas
conformes, corpo esbelto; de rosto, uma travessura. Para ele, tudo
assim espetacular.
Dera de
vista com Zulmira ainda no tempo do marido. “Mulher porreta!”. Teria pensado de
olho duro para a moça que nem se dera conta do espanto dele. Viam-se, depois,
vez em quando, um passando pelo outro, ela de braço dado com o marido,
escurinho sisudo, bem vestido, de óculos e chapéu. O que mais o impressionava
agora eram os sonhos com Zulmira, toda noite entre paisagens, lugares
desconhecidos, carinho e intimidade.
Havia lido
num autor russo que o sonho é obra do córtex, membrana superficial do cérebro
que grava tudo o que vemos, com maior ou menor intensidade – paisagens, pessoas
e objetos, mesmo através de TV, foto, cinema.
Lembrava
que via Zulmira todo dia. Não via também, outras pessoas? Por que sonhava
somente com ela? Um mistério.
Agora, bem
que podia sonhar à vontade, pois Zulmira estava solteira, desimpedida. Pensou
fazer-lhe uma proposta escrita, antes mesmo dela esfriar a cabeça por causa da
separação. Fez-lhe um bilhete, letra
tremida, palavras açucaradas sugerindo um encontro, tal lugar, às tantas horas.
Assinou embaixo, nome completo para evitar dúvidas.
Passou a
noite sem pregar um olho, nem madorna para os sonhos, nervoso entre
perspectivas. Sim ou não? Lembrava-se dos sonhos, dos cenários em que Zulmira
devera haver-se gravado toda em seu córtex. Por que nos sonhos ela o tratava
com tanta intimidade? Na vida real não ocorria assim, era Zulmira alheia, mesmo
agora sozinha, sem o marido escurinho chamado Marcelo, parece que da Silva,
ciumento, de óculos e chapéu, caixa de um banco. Tinha remota esperança de uma
resposta, sim ou não? Confiava no ímã que acreditava ter sobre as mulheres.
À noite,
quando voltava da rua, passava rente à casa de Zulmira, via as vidraças de uma
janela larga refletindo a claridade. “Deve estar acordada, certamente
assistindo televisão ou lendo revista, de roupa íntima para dormir”. Lembrava
novamente dos sonhos, sentia um desejo feroz pela mulher. Será que o bilhete
teria resposta? E se o mesmo não fora entregue! A portadora, mulatinha de sua
intimidade, era uma menina séria.
Passaram-se três dias sem resposta e sem os sonhos com Zulmira. O seu
córtex estaria cansado de expectativa. Ela estaria preocupada com a separação.
Como dizem que tudo tem dia certo, a resposta chegou. Quase uns rabiscos:
“Quando voltar passe por aqui. A porta estará encostada”.
Nem acreditou, leu outra vez, repetiu.
Zulmira, agora, podia decidir o que quisesse, era uma mulher desimpedida. Se
satisfação endoidasse, ele ficaria maluco. Quase voltava da rua antes do
horário de costume, ponderou e decidiu-se pela hora normal de chegar em casa.
Noitinha
aproximou-se da residência de Zulmira, subiu à calçada, chegou rente à porta
somente encostada, empurrando-a, sutil, trêmulo, quase com medo, obcecado, e
entrou.
Agora,
frente a frente com Zulmira, sem saber como iniciar conversa ante a mulher de
seus sonhos. “Pronto, meu amor”, falou assim, abafado, olho duro para ela de
risinho frio, certamente surpresa com a aparecença dele, coisa de gente
aventureira. Diálogo curto, olhares de banda, interrogativos. A cama agora
seria o destino. O quarto, estranho para ele, turvo, diferente dos cenários dos
sonhos; televisor ligado, pisca-pisca refletindo nas paredes.
Depois, o
cheiro do corpo de Zulmira, diferente do
perfume imaginado nos sonhos. As mãos dela, agora, nem eram macias e,
finalmente, a frieza entre os dois.
Na
primeira tentativa ele falhou inibido com a inquietação dela, com a respiração
apressada, desajeito nos movimentos. Sentiu-se sufocado, calor subindo, nervos
esticados. Relutou até às tantas, inutilmente. Saiu cabisbaixo, quase pedindo
desculpa, certo que não era aquela a Zulmira gravada em seu córtex.
Na noite
seguinte os sonhos voltaram, devolvendo-lhe a felicidade. Extravasou-se por
inteiro, realizando tudo o que não conseguira ao vivo deitado com Zulmira.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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