Neguinha Desassuntada
Virgínia.
“Neguinha desassuntada”, como dizia Emília, filha de dona Honorata. Dez anos,
nem parecia ter só essa idade. “Cada coxa!”. Dizia André da venda, sujeito enxerido, metido na vida dos outros.
Pelada
embaixo de um ponche puído, ela se arreganhava toda para Pedrinho, menino ainda
tolo, neto de dona Honorata; ele nem ligava para as doideiras, mas Virgínia
insistia, cínica, dentes brancos de fora, alheia a quem estivesse em redor,
Pedrinho desviava os olhos. Nessa situação, ela dava um muxoxo para o vento,
juntava a frente do ponche encardido e o abotoava, cobrindo as coxas robustas,
saindo depois como um redemoinho, articulando outras patacoadas. Mas era
amorosa e meiga a momentos; penteava o cabelo de Emília e fazia cafuné em dona
Honorata. “Bênção, seu Crispim”. Era o marido de Emília.
A família
tinha uma fazenda cheia de bois de raça, vacas leiteiras e um mundo de
criações. Virgínia fora dada a eles pelos próprios pais que sumiram depois para
o Sul. Cresceu num abrir e fechar de olho, bonitinha; aprendeu a lavar roupa,
cozinhar, levar recados, e alguma leitura numa escola ruim. Aos oito de idade
quase morria de catapora e no auge da coceira saltou da cama e ganhou a rua, cheia
de febre, xingando, gritando, danada se
coçando aos pulos; foi uma luta reconduzi-la para a cama.
Era criada
sem nenhuma surra, somente dono Honorata corrigia-lhe com beliscões ou puxões
de orelha. Emília prendia-lhe vez em quando no quarto escuro que ficava no
fundo do quintal, amarrando-lhe os pulsos e os rejeitos com corda de pindoba;
nem uma lágrima. “A neguinha tem natureza de cão”. Estrebuchava, gemia
baixinho, tremia. Quem mandou fazer encrencas? Era também pela cor, pelo cabelo
de pixaim, pelo cheiro embaixo dos braços. E o corpo bem-feito, os peitos
duros, as pernas torneadas cor de chocolate puro? Olhavam, sim, como André da
venda.
Emília
gostava dela penteando-lhe os cabelos
finos, as mechas entre os dedos iam virando caracóis enfileirados, como tubos
de seda; Emília nem sabia ajeitar o
cabelo como fazia Virgínia; a carícia
das mãos, o jeito de passar o pente. Olhava-se ao espelho e via os tubos
sedosos transformados em cachos caídos pelos ombros. Nesses momentos queria bem
a Virgínia, não teria coragem de prendê-la no quarto escuro, com os pulsos e os
rejeitos amarrados. Gemia e esperneava-se até às tantas; “Só vou te soltar à
tardinha”.
Num
esfregar de olho Virgínia explodia com novas invenções, soltava traques nos ouvidos das cabras, jogava lagartixas
gargueladas nos bolsos dos meninos. Amarrava uma linha numa tira de pano preto e puxava-a rente aos
pés das pessoas; fez isso uma vez com dona Honorata: “uma cobra!”. Dona
Honorata caiu da cadeira, pernas pra cima, gemendo. Virgínia passou o resto do
dia amarrada no quarto escuro, sem comer. Uma desassuntada. Falava putaria com
Pedrinho, mostrava-lhe o bico do peito, “pegue aqui”, desabotoando a frente do
ponche. Pedrinho nem ligava. Neguinha boa para levá-lo ao colégio, vigiá-lo
tomando banho na represa da fazenda; penteá-lo, ajeitar a farda da escola. As
descarações dela nem deviam ser por maldade. Se Emília aparecesse no momento!
“Pega aqui”. Virginia nunca pensava que ela aparecesse, não levava nada a
sério, nem as intenções parecendo maldosas. Mas não eram, somente deboche, boca
porca até junto de dona Honorata, soltando nomes descarados. Fingia timidez com
Emília que não vacilava em jogá-la dentro
do quarto escuro do fundo do quintal.
Casualmente lembrava-se do pai e da mãe,
“sai daqui, pestinha!”. Não apanhava nem ficava presa em quarto escuro, mas passava fome e outras
necessidades, por isso não sentia lá essas saudades do passado ainda próximo,
somente uma compaixão sutil pelo pai magro, cor de jabuticaba, olhos brancos,
cabelo betumoso, barbicha rala na ponta do queixo; pela mãe, mulata tisnada de
sol, de saia velha de chitão atada à cintura. “Vim lhe trazer a menina, dona
Emília”. Virgínia se lembrava do dia, do momento. Teria guardado alguma mágoa
dos pais? Morava numa casa boa e bem pertinho da fazenda cheia de bois de raça,
vacas leiteiras, cabras por todo canto; uma represa para tomar banho com
Pedrinho. Tinha o que comer, cama macia para dormir. Lembrava-se do quarto
escuro onde pagava suas dívidas, as presepadas que fazia com dona Honorata.
“Neguinha desassuntada”.
(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário