A
palavra Mocambo e os dicionários brancos
O dicionário é o inventário dos signos, a vitrine escritural
onde as palavras eleitas estão à vista como roupas sofisticadas nos mostradores
dos shoppings centers. Talvez seja isso mesmo, mas nem tanto. Nunca gostei
muito das palavras de origem africana no dicionário dos brancos: significados e
significantes carcomidos pelo enredar do racismo. Nosso corpo-palavra
destroçado por abutres com óculos e títulos a deixarem só ossos, sangue e
miséria no terreno das nossas significações.
Falo isso porque sempre gostei de uma palavra, não lembro
nitidamente quando foi que a ouvi pela primeira vez, acho que foi com minha
falecida avó, Xanda, ela estando na casa da minha mãe, Maria, falou: “Quero
dormir no meu mocambo” e me chamou para levá-la à sua casa. A palavra mocambo ressoou
nos meus ouvidos com tanta intimidade e poder que pude senti-la por todo o meu
corpo e pude conceber toda a sua significação naquele momento.
Talvez aí surgiu o poeta, o estro original que compõe todas
as demais inspirações. Pode ser. Entendi logo: o que ela falou para minha mãe
não poderia ser pronunciado com a palavra casa, era um vocábulo fraco,
deslocado, não cabia em sua morfologia, em sua sintaxe, em sua fraseologia
afetiva e mágica. Mocambo para vovó era o quilombo íntimo, onde os
filhos e os netos lhe rodeavam, e poderia estender toda a sua zanga, dengo e
saberes, ordenando só com o olhar a dinâmica do lar, que se alargava à
comunidade e tudo isso compunha toda uma forma de organização matrilinear.
O mocambo era palavra poderosa saída da boca da
minha ancestral, tinha substância vivencial, mas quando fui ler seu significado
no dicionário, aprendi que as leituras desses verbetes, mefistofelicamente,
poderiam derrear os meus saberes. Como eles poderiam querer desfazer, matar o
significado de tudo que havia aprendido com a voz da minha mais-velha? Como
poderiam dizer que mocambo significa habitação miserável, palhoça, coutos de
escravos fugidos, e se fosse adjetivo era: sem-valor, pífio? E várias outras
definições que colocavam na subalternidade das significações a
palavra mocambo, signo de poder evocado na pronuncia da minha avó.
Os dicionaristas haviam pegado as palavras na boca dos meus
ancestrais e sofismado seus significados. Há de se perceber sempre as nuances
de como eles nos ferra. Sei que o homem e a mulher escravizado(a) que queimou o
engelho, matou o escravocrata, o feitor, entrou no profundo da mata, fez
o Quilombo dos Palmares, fez o Quilombo do Cabula, do Urubu, do Buraco do
Tatu e tanto outros por esse país sabia, como a minha vó, que o mocambo era o
nosso espaço redivivo de uma África já distante, o lar onde erguemos pela
primeira vez nessa terra o nosso assento de repouso, a nossa íntima liberdade.
=====
Davi Nunes, soteropolitano de nascença, graduado em Letras
Vernáculas pela Universidade do Estado Da Bahia- UNEB, é poeta, contista,
roteirista, escritor de livro infantil e, na universidade, editor a revista
artística-acadêmica Cinzas no Café. Em 2003, saindo do colegial, publicou o
livro de poesia Fragmentos da Minha. No ano de 2006, ganhou o concurso de
poesia do CRIA – Centro de Referência Integrado de Adolescente, sobre a
curadoria do poeta Zeca de Magalhães. Já em 2007 teve o cordel O Negro Beiru
premiado na XI Bienal do Livro de Salvador-Bahia. No Ano 2011 editor a revista
artística-acadêmica Cinzas no Café, em 2013 foi letrista da
webserie musical La dance, produzido pelo Cinearts, neste mesmo ano, teve o
poema Notívago Dândi ganhador do concurso internacional de literatura Sede
poética, organizado pela editora Clube dos autores de Curitiba. Em 2015, teve o
conto Cinzas adaptado para o cinema pela cineasta Larissa Fulana de Tal, também
dividiu o roteiro do filme Cinzas com Larissa. O filme foi
lançado no Festival Latinidades 2015, no dia 24 de Julho. Ademais assinou
contrato com a editora Uirapuru e publicou o livro infantil- Bucala: a pequena
princesa do Quilombo do Cabula. Nesse ano de 2016 foi selecionado no
Prêmio Literário Enegrescência para participar da Antologia Literária, a qual
publicou oito poemas, além de ter sido selecionado para compor o 6º volume da
Coleção Besouro, o livro A Makena e o Faraó, com o conto infanto-juvenil, O
Menino das Vinte oito Tranças um Rei Faraó, além de ser colaborador de um site
de cultura de EUA, Cores Brilhantes (http://www.coresbrilhantes.com/contributors) e
mantem o blog que versa sobre a cultura afro-brasileira, chamado Duque dos
Banzos.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário