Saudade não
é viver no passado
Saudade não é tristeza, nem viver no passado ou tentar
revive-lo ( o que passou não se vive de novo, jamais). Saudade é lembrança, e
sem lembrança é impossível viver, assim como não se vive sem sonhos
e sonhos realizam-se no presente e no futuro. Assim, ter saudades é ser feliz,
é ter o que contar aos amigos e parentes queridos. Sofrimentos todos temos e
teremos sempre, pois a vida , mesmo não sendo um vale de lágrimas, também não é
um mar de rosas, misturando-se num amálgama de momentos que nos atingem de
maneiras distintas, alegres e felizes, ou tristes e pesarosos, estes
também inafastáveis, por mais dolorosos que possam se mostrar e nos ferir, até
porque, “quem, quem passou pela vida e não sofreu, foi
espectro de homem, não foi homem , só passou pela vida, não viveu”.
Aproveitando Vinícius , quando a gente nasce começa a
morrer. E cada dia vivido é, na verdade um dia a menos e o que vejo, o que
percebo, é que o pavor da viagem sem regresso, vai nos deixando mais
preocupados e, por isso mesmo, mais próximos da divindade, das Igrejas, dos
escritos religiosos. Não sei bem o que acontece comigo, porque está sucedendo
exatamente o contrário: cada dia sinto-me mais distante das crenças religiosas
de minha infância, quando minha querida mãe, fervorosa e dedicada crista, lia a
Bíblia em casa e nos convencia de sua “verdade” , com uma fé que se
mostrou inquebrantável ao longo dos seus 92 anos de plena lucidez e
trabalho constante na elaboração de flores , pinturas , costuras para os filhos
e para o marido que lhe sobreviveu por mais 5 anos. Tenho saudades
dessas momentos.
Tenho saudades de minha infância jogando bola de gude com as
outras crianças na rua de terra, ou empinando arraias ( pipas), nas tarde de
domingo e disputando quem conseguia pegar aquelas que era “cortadas “ e se
perdiam nos volteios ao sabor dos ventos.
Saudades das brincadeiras sem conta em torno da estação de
trens , sempre com as roupas domingueiras ( embora os trens nunca chegasse
aos domingos); saudades de ouvir o rádio que funcionava com bateria
de carro e só podia ouvir à noite porque a recarga da bateria era difícil,
tinha que procurar na cidade com os poucos proprietários de caminhão, quem ia
viajar para carregar a bateria, ou ficar sem rádio mesmo até achar um amigo com
disponibilidade para ajudar.
Saudade da quermesse na praça nos dias de festa
da Igreja e de minha mãe zangada com meu pai ( que só fazia sorrir e se
divertir), quando as moças o “prendiam” numa roda e cobravam uma prenda para
solta-lo. Saudades do “correio elegante” nesses dias alegres, quando “alguém”
mandava dizer a “alguém que está de saia azul e blusa
branca” , que a ama e quer “voltar”; saudades do pau de sebo, da “cabra
cega” , quando um garoto tentava acertar um grande jarro de barro com
um pedaço de madeira e quando o quebrava de lá saiam um gato desesperado,
muitas cinzas, mas também alguns brinquedos e muitos bom-bons; e das zangas e
castigos de minha mãe quando chegava em casa todo sujo de terra e de
cinzas e sem nada nas mãos ( jamais consegui pegar um
único bom-bom..) mas muito me divertia.
Saudades das brigas com os outros meninos, das
roupas rasgadas, para desespero de minha mãe, cabeça quebrada,
pernas e braços ralados, nariz sangrando.
Saudades de ler As viagens de Guliver e dos livros de
Monteiro Lobato, da sujeira da tinta de escrever que derramava nos livros , nos
cadernos e nas fardas do colégio para desespero da professora e de minha
saudosa mãe.
Saudades, muitas saudades, alicerces de nossas vidas, não
são o reviver do passado pois, como disse, o que passou, passou. Mas
não existimos sem passado, sem sustentação do que fomos e vivemos,
como não vivemos sem sonhos que são o presente e o futuro.
Eurípedes Brito Cunha - Advogado, pós
graduação em Direito Imobiliário pela Universidade Católica do Porto, Portugal;
foi presidente da Seção da Bahia da OAB e Conselheiro Federal da OAB;
Comendador pelo Estado da Bahia; portador da Medalha Tomé de Souza pela Câmara
de Vereadores de Salvador, Bahia; Membro do Instituto dos Advogados
Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia; Presidente do Instituto
Bahiano de Direito do Trabalho; professor de Direito do Trabalho e Processo do
Trabalho da Escola Superior de Advocacia da OAB/Bahia; membro da Academia de
Letras da Cidade de São Bento, Maranhão; articulista do Jornal e da Revista
Direitos. Faleceu dia 13 de abril de 2014.
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