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segunda-feira, 26 de junho de 2017

SAUDADE NÃO É VIVER NO PASSADO - Eurípedes Brito Cunha

Saudade  não é  viver  no passado 


Saudade não é tristeza, nem viver no passado ou tentar revive-lo ( o que passou não se vive de novo, jamais). Saudade é lembrança, e sem lembrança é impossível viver, assim como não se vive  sem  sonhos e sonhos realizam-se no presente e no futuro. Assim, ter saudades é ser feliz, é ter o que contar aos amigos e parentes queridos. Sofrimentos todos temos e teremos sempre, pois a vida , mesmo não sendo um vale de lágrimas, também não é um mar de rosas, misturando-se num amálgama de momentos que nos atingem de maneiras distintas, alegres e felizes, ou tristes e pesarosos,  estes também inafastáveis, por mais dolorosos que possam se mostrar e nos ferir, até porque, “quem,   quem passou pela vida e não sofreu, foi espectro de homem, não foi homem , só passou pela vida, não viveu”.
  
Aproveitando Vinícius , quando a gente nasce começa a morrer. E cada dia vivido é, na verdade um dia a menos e o que vejo, o que percebo, é que o pavor da viagem sem regresso, vai nos deixando mais preocupados e, por isso mesmo, mais próximos da divindade, das Igrejas, dos escritos religiosos. Não sei bem o que acontece comigo, porque está sucedendo exatamente o contrário: cada dia sinto-me mais distante das crenças religiosas de minha infância, quando minha querida mãe, fervorosa e dedicada crista, lia a Bíblia em casa e  nos convencia de sua “verdade” , com uma fé que se mostrou inquebrantável ao longo dos seus 92 anos de plena lucidez  e trabalho constante na elaboração de flores , pinturas , costuras para os filhos e para o  marido que lhe sobreviveu por mais 5 anos. Tenho saudades dessas momentos.

Tenho saudades de minha infância jogando bola de gude com as outras crianças na rua de terra, ou empinando arraias ( pipas), nas tarde de domingo e disputando quem conseguia pegar aquelas que era “cortadas “ e se perdiam nos volteios ao sabor dos ventos.

Saudades das brincadeiras sem conta em torno da estação de trens  , sempre com as roupas domingueiras ( embora os trens nunca  chegasse aos domingos); saudades de ouvir o  rádio que funcionava com bateria de carro e só podia ouvir à noite porque a recarga da bateria era difícil, tinha que procurar na cidade com os poucos proprietários de caminhão, quem ia viajar para carregar a bateria, ou ficar sem rádio mesmo até achar um amigo com disponibilidade para ajudar.

Saudade da  quermesse na praça nos dias de festa da Igreja e de minha mãe zangada com meu pai ( que só fazia sorrir e se divertir), quando as moças o “prendiam” numa roda e cobravam uma prenda para solta-lo. Saudades do “correio elegante” nesses dias alegres, quando “alguém” mandava  dizer a “alguém que está de saia azul  e  blusa branca” , que a ama e quer “voltar”; saudades do pau de sebo, da  “cabra cega” , quando um garoto tentava acertar um grande jarro de barro  com um pedaço de madeira e quando o quebrava de lá saiam um gato desesperado, muitas cinzas, mas também alguns brinquedos e muitos bom-bons; e das zangas  e castigos de minha mãe quando chegava em casa todo sujo de terra e de cinzas  e sem nada nas mãos  ( jamais consegui pegar um único bom-bom..)  mas muito me divertia.

Saudades das  brigas com os outros meninos,  das roupas rasgadas, para desespero de minha mãe,  cabeça quebrada, pernas e braços ralados, nariz sangrando.

Saudades de ler As viagens de Guliver e dos livros de Monteiro Lobato, da sujeira da tinta de escrever que derramava nos livros , nos cadernos e nas fardas do colégio para desespero da professora e de minha saudosa mãe.

Saudades, muitas saudades, alicerces de nossas vidas, não são o reviver do passado  pois, como disse, o que passou, passou. Mas não existimos sem passado, sem  sustentação do que fomos e vivemos, como não vivemos sem sonhos que são o presente e o futuro.


Eurípedes  Brito  Cunha - Advogado, pós graduação em Direito Imobiliário pela Universidade Católica do Porto, Portugal; foi presidente da Seção da Bahia da OAB e Conselheiro Federal da OAB; Comendador pelo Estado da Bahia; portador da Medalha Tomé de Souza pela Câmara de Vereadores de Salvador, Bahia; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia; Presidente do Instituto Bahiano de Direito do Trabalho; professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Escola Superior de Advocacia da OAB/Bahia; membro da Academia de Letras da Cidade de São Bento, Maranhão; articulista do Jornal e da Revista Direitos. Faleceu dia 13 de abril de 2014.



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