Carol
Não sabia
por que se visgava tanto a Carol. Um absurdo.
Bonita ela
não era e de perfil chegava próximo a ser feia – nariz levemente curvo, olhos
muito espaçados um do outro, de lábios finos, boca que nem imitava um coração.
Somente os cabelos eram razoáveis – lisos, cheios, de colorido entre marrom e preto.
De corpo, algum atrativo, o que não quer dizer se parecesse com um modelo,
muito menos com uma miss; os seios eram duros e mais próximos da barriga do que
da base do pescoço um tanto envelhecido, mostrando rugas discretas. 32 anos.
Seria impressão
pelo nome, uma obstinação? Carol. Não era apelido, nome verdadeiro. Lembrava
que na infância conhecera uma menininha ao lado chamada assim. Apelido. O nome
de batismo dela era Carolina. Mas, por isso ou aquilo, sentia-se visgado por
Carol.
Quando se deitava com ela, era um sufoco,
uma alucinação. Esquecia-se do mundo; predestinação, lembrava.
A mãe dele
dizia que tudo na vida é traçado pelo destino. “Ninguém foge do destino”, ela
falava. Tantas mulheres bonitas por aí, novinhas, só ele garrado com uma sem
expressão. “Será pelo cheiro do corpo”? Exalava de baixo para cima, lembrando
cheiro de marisco. Ele o sentia estranho, mas gostava.
Havia também
o estridente da voz, a maneira de fechar os olhos. Um conjunto de coisas que o
deixava confuso, com o juízo exacerbado. Magrinha, sem polimento na expressão
do falar; sem elegância no porte, “sem coisa nenhuma que justifique essa
obsessão”. Tentava ou pensava nisto, arrumar outra que o recomendasse no meio
onde vivia – conhecido, de bom conceito, contabilista acreditado, capaz de
conseguir namoradas bonitas, de família importante, às vezes, pensando em tudo
isso, sentia pena de Carol, humilde, magrinha, com cheiro de marisco vindo de
baixo. Mas não podia. Quem lhe mandou meter-se!
De certo
modo, seria fácil libertar-se. A qualquer dia desses. E ficava pensando nessa
possibilidade, mentalizando arrumar-se adiante.
Lembrava de
uma balconista de olhos verdes que ia toda tarde tomar sorvete numa lanchonete
ao lado do escritório onde trabalhava. Devia ser perfumada, tinha a boca bem
delineada, os seios altos o os olhos com uma distância estética entre um e
outro. Já ouvira ela falar, voz meiga, sem as manhas da fala de Carol. Vinham
outras em suas ideias, lembrava que desde menino atraía as mulheres e não seria
agora, com os primeiros fios brancos aparecendo, que ia se dobrar ao destino,
como acreditava a mãe dele. Teria que buscar a razão, meio que o recomendasse
entre amigos, parentes e conhecidos. Pensava assim sentindo pena de Carol,
desconfiada, rústica a momentos: “quando eu sumir, você vai ver!” Ele ouvia,
pensando sem acreditar, senhor de si mesmo. Teria quantas quisesse, bonitas,
cheirosas.
Carol lhe
beliscava, atravessava os olhos. “Sabe que você é feio?” depois ficava
embutida, trancada. Ele se afastava e Carol ficava resmungando, falando
baixinho, xingando. O cheiro subia ativo, inalante. Tinha pena de Carol
começando a envelhecer. “Pensa que vai encontrar outro igual a mim!” Sentia-se dono
da situação, dono de Carol, absoluto.
Vez em
quando ela sumia. “Por quê?” Ficava doido pela rua, pelas esquinas, os olhos vasculhando. Nem de longe ninguém
parecido, nem no porte nem no andar. “É bom que ela não me apareça mais!”
Sentia falta dela, dos olhos afastados um do outro, da fala sutil, às vezes estridente. Lembrava do cheiro e
parecia senti-lo ativo, subindo, tomando conta do nariz.
A moça que
gostava de sorvete era perfumada, ele sentia o cheiro passando; tinha os lábios
de coração, os olhos verdes. Havia outras conhecidas, e desconhecidas, era só
avançar.
Mas
Carol voltava, aparecia de novo,
misteriosa, olhos espaçados trejeitando. Entrava, as mesmas conversas, cabelo
cheio caindo pelos ombros. Ia para o quarto dele, ajeitava o forro da cama, o
travesseiro, futucava coisas dentro do guarda-roupa. Ele ficava calado,
assuntando de banda, surpreendido, desconfiado, satisfeito, temendo agora que
Carol fosse embora para sempre. Um dia. “Quando?” O dia chegou.
Ninguém lhe
deu mais notícias dela. Nunca mais viu, também, a moça da sorveteria, de olhos
verdes; nem as outras conhecidas, nem as desconhecidas. Deitava-se sozinho,
esticava-se cheio de lembranças. À noite, quando ia dormir, sentia o cheiro de
marisco, ativo, dos pés da cama para a cabeceira. Metia o rosto no travesseiro
e sentia vontade de chorar.
(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas
* * *
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