Notícias do caos
Aconteceu uma pequena catástrofe aqui em casa: meu
escritório foi vítima de uma pintura.
Imagino que, na vida de uma pessoa razoável, seria apenas um
transtorno temporário. Mas, dessa vez, a pintura das paredes tornou meu habitat
uma sucursal do caos, pelo menos aos meus olhos.
O único benefício do desastre é que fui obrigado a passar em
revista alguns de meus pontos cardeais.
A primeira coisa que pendurei de volta
na parede foram os desenhos de Millôr Fernandes. Antigos, do início da década
de 60, quando ele se assinava Vão Gogo e escrevia uma coluna chamada Pif-Paf,
na revista “O Cruzeiro”, na qual meus companheiros de geração e eu tivemos o
privilégio de ser alfabetizados. Ou melhor, fomos refinadamente
analfabetizados, porque o Millôr nunca respeitou os cânones.
Depois me deparei com um quadro de minha querida Marília
Kranz, que, depois do furacão da pintura, ficou de pernas para o ar.
O que não
me espantou, porque Marília sempre teve a aptidão de virar o mundo de cabeça
para baixo — chegou a morar na Cidade do Vaticano, em circunstâncias que não
posso revelar aqui, por impróprias para menores de 69 anos. E ai do mundo se
não fizer o que ela manda! É uma generala. Perto dela, Napoleão Bonaparte
parece o Toni Ramos.
Atrás de mim, entre meus poucos troféus, ficou um que, por
acaso ou não, se chama Ana Cristina César, minha ex-colega da PUC. Sempre fomos
felizes em nossa amizade, até que ela resolvesse pôr fim à sua vida de pássara
e poeta.
No mesmo lado da estante fica a imagem de William
Shakespeare, sorrindo, carregando a caveira mais famosa do teatro mundial. E
uma coleção de figuras literárias: Dom Quixote, Shakespeare de novo, James
Joyce, Mark Twain e Edgar Allan Poe — sendo este o mais doido de todos, mais
doido do que todos nós, o que já é um consolo. Se não me engano, o quarteto me
foi trazido por minha querida Edna Palatnik.
Do outro lado do escritório há uma estante com retratos
românticos e um pequeno álbum de família. Havia também uma galeria de fotos de
amigos, mas acho que não vou pendurá-la de novo, porque, ao vê-la, sinto
saudades dos outros e de mim.
Há também uma aquarela que comprei no Quilombo da Marambaia,
onde fui a bordo de um saveiro, em missão poético-cultural. Como tinha quebrado
a perna e estava usando muletas, atolei no caminho, que era um verdadeiro
areal. Fui içado e salvo pelos quilombolas, como se eu fosse um Indiana Jones
depois da tuberculose.
Ainda falta pendurar os álbuns de Flash Gordon e Príncipe
Valente, heróis de minha infância. E também a reprodução de “O jardim das
delícias terrenas” — pintado por Hieronymus Bosch, no século XV —, antes que
algum pastor ou autoridade eclesiástica venha aqui em casa confiscá-lo, em nome
da moral e dos bons costumes.
O Globo, 22/10/2017
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Geraldo Carneiro - Sexto ocupante da Cadeira 24 da ABL,
eleito em 27 de outubro de 2016, na sucessão de Sábato Magaldi e recebido em 31
de março de 2017 pelo Acadêmico Antonio Carlos Secchin.
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