Reminiscência da Roça
Como era gostoso, tranquilizador,
um dia passado numa fazenda de cacau, daquelas de antigamente, que não tinham
conhecido ainda os horrores da praga que as atingiria mais tarde, quando ainda
se estendiam verdejantes, pujantes de vida vegetal. A quietude reinante
acalmava o espírito, a paisagem bucólica despertava um quê de doce nostalgia,
mesmo no espírito simplório de uma criança. Na propriedade grande de um
fazendeiro, a visão era a da casa ampla, de construção simples,
porém sólida, cheia de janelas, telhado à vista, tendo de frente uma comprida
varanda onde a brisa da tarde bafejava a família reunida no ajuntamento feliz
de um entardecer.
Mais
à frente as barcaças, repletas de sementes de cacau secando ao sol, revelavam
riqueza. Aves de criação ciscando aqui e acolá em volta da casa, as árvores do
pomar ao lado balançadas pela brisa, quase sempre o murmúrio de um
rio ou riacho mais além completavam a beleza da paisagem.
Homens de
pele morena, tostada pelo sol, outros de pele negra lustrosa, mostrando nos
braços nus a força musculosa da raça, entregues à sua faina diária, circulavam
dando mais vida ao conjunto. Eram os trabalhadores, barcaceiros, às vezes
vaqueiros, empregados, enfim, que no dia-a-dia afanoso ajudavam o proprietário
a manter em funcionamento o seu grande império de cacaueiros. Aqueles
cacaueiros robustos e carregados de frutos representavam a força do trabalho, a
fertilidade da terra, a bonança do clima, e eram a garantia da riqueza de uma
vasta região.
Tanto
ao nascer do dia, anunciado pelo canto dos galos e chilrear dos passarinhos no
seu despertar, como à tardinha, quando uma paz tristonha descia sobre tudo,
homens e natureza, a fazenda na sua quietude se transformava em imensa
tela pintada pelas mãos de um artista invisível. A beleza pictórica da fazenda,
o cheiro do cacau secando nas barcaças ou vindo de longe, dos cochos de
fermentação, trazido pelo vento, impregnando o ar, não podiam deixar de
se transformar em lembranças indeléveis para quem os viu e sentiu.
Assim, são relembrados dias passados entre os cacaueiros, quer fossem de
fazenda grande, quer fossem de uma simples burara. A quietude era sempre a
mesma. Na pequena fazenda ou roça, o silêncio, a nostalgia do cair da tarde,
eram os mesmos. O romper da madrugada era também anunciado pelo canto das aves,
o mugir de uma vaca no pasto ou o ranger de uma cancela. A mesma sensação de
felicidade nunca deixava de invadir a alma, num despertar aquecido pelos raios
do sol que se infiltravam mansamente pelas frestas das telhas vãs, trazendo um
acordar gostoso, alegre, como sacudido docemente por um afago materno.
Na
roça de cacau, pisar aquele chão ensombreado pelas copas dos cacaueiros,
coberto de folhas que farfalhavam sob os pés, ouvir o zumbido das abelhas na
laranjeira em flor, o pio triste de um pássaro num galho de árvore, nos davam a
sensação de sons emitidos pelo mato, só escutados naquele silêncio. Sons que se
gravariam na lembrança e que nunca se apagariam. São eles, hoje, ruídos do
passado e da saudade que nunca vão embora, vivem sempre ao nosso lado. Nós é
que, à medida que caminhamos, os vamos deixando para trás, mas um dia eles
sempre voltam e nos alcançam.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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Helena Borborema - Conhecida professora itabunense,
filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora
de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se
unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano
daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel,
‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo
inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de
uma professora que crê no homem e na terra’. (Cyro de Mattos)
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