Machado de Assis leu,
com certeza, Octave Feuillet e Gustave Flaubert, Balzac e Zola, mas, enquanto
romancista, sua pátria espiritual era a Inglaterra, “o país do romance”, como
a denominou Edmond Jaloux, insuspeito por ser francês. Isso contrariava as
expectativas por assim dizer automáticas do leitor brasileiro oitocentista,
desorientando boa parte dos críticos, muitos não sabendo o que fazer com
aquele corpo estranho que, a partir de “Ressurreição” (1872), caía-lhes de
repente sobre a mesa e as idéias feitas. É história interessantíssima, como
diria José Dias, ordenada por Ubiratan Machado em livro igualmente
interessantíssimo (“Machado de Assis: roteiro da consagração”. Crítica em
vida do autor. Rio: EdUERJ, 2003).
Era romancista vitoriano,
oposto, por temperamento, à libertinagem literária do século anterior,
supremo artista da litotes no vocabulário e no desenvolvimento narrativo.
Adotando no “Brás Cubas” algumas inovações técnicas de Sterne, ele mesmo
desencaminhou os críticos de leitura superficial e apressada, que passaram
mecanicamente a encará-lo, não como “humorista” autêntico e nativo, mas, nas
palavras de Sílvio Romero, como “uma imitação, aliás pouco hábil, de vários
autores ingleses”. Não sendo inglês, não podia ser “humorista”, pela simples
razão de que o humour (como então se escrevia) é uma secreção orgânica
específica da “raça inglesa”, tese defendida num clássico dos estudos
machadianos. Ou, ainda no gracioso julgamento de Sílvio Romero: “O humour de
Machado de Assis é um pacato diretor de secretaria de Estado e o horrível de
seus livros é uma espécie de burguês prazenteiro, condecorado com a comenda
da Rosa... (...) O temperamento, a psicologia do notável brasileiro não são
os mais próprios para produzir o humour , essa particularíssima feição da
índole de certos povos. Nossa raça em geral é incapaz de o produzir
espontaneamente”. Ora, o primeiro erro dessa leitura está, precisamente, na
suposição todo arbitrária de encará-lo como humorista, o que não é em nenhum
dos seus livros, sem excluir o “Brás Cubas”. Os que o afirmam leram-no de
afogadilho, saltando páginas à procura de curiosidades tipográficas, sem
realmente entender o que estavam lendo. A questão foi colocada por Oliveira
Lima em gabarito intelectual mais elevado:
“É possível que Machado
de Assis tenha experimentado a influência de Sterne ou de Swift. Ele admira
os bons modelos e preza os antigos como todo homem dado às letras, mas a
razão da sua delicadeza parece-me antes estar em que o seu temperamento
corresponde ao dos citados autores do século XVII, em que a sua
característica urbanidade tão pessoal e imudável, condiz com aquela ironia
flagelada mais do que flageladora, com aquela que, se não era ainda dolorosa,
já era humana e tinha a refreá-la o respeito das normas, que o romantismo se
aprouve em destroçar”.
Para a “voracidade
insaciável dos leitores de língua inglesa”, escreve Jorge de Sena, a leitura
de romances substituía a oratória do púlpito ou parlamentar: o romance
tornou-se, acima de tudo, um veículo para o conhecimento do homem, uma lição
moral, não só pelo que pudesse ter de proveito e exemplo, mas, ainda, como
estudo da condição humana e suas paixões, não em abstrato, mas integrada na
vida social. A complexidade da intriga, as múltiplas linhas narrativas que se
cruzam, a variedade e o antagonismo dos caracteres, tudo devia transmitir a
sensação do mundo real.
É fácil perceber a
similaridade de concepção e trama narrativa entre “Iaiá Garcia”, que é de
1878, e “Middlemarch”, de George Eliot, publicado sete anos antes, romance
que, “pela amplidão da estrutura, a perspicácia das análises, a problemática
complexa, o dramatismo da ação, a serenidade da narrativa, a dignidade
intelectual, a consciência do tempo agindo sobre as vidas das personagens”,
é, não só “o mais ambicioso dos romances vitorianos” (Jorge de Sena), mas o
protótipo de todos eles. Descrição que se pode aplicar, ponto por ponto, a
“Iaiá Garcia”, romance geralmente subestimado sob a alegação todo fantasiosa
de ser o último de uma suposta “primeira fase”.
A aceitar tal dicotomia,
romance de soberba maturidade intelectual, será, antes, o primeiro da série
magistral que terá prosseguimento, justamente, com “Brás Cubas”, romance
irônico, este, que se desdobrou em romance dramático. Ao lado de “Dom
Casmurro”, que requer leitores amadurecidos e cultos, “Iaiá Garcia” será, dos
livros de Machado de Assis, o mais exposto às tresleituras, iniciadas, já no
lançamento, com o artigo de Urbano Duarte: “Foi-se também ‘Iaiá Garcia’, e
tão desenxabida como no dia em que nasceu. Inda estamos por saber que tese
quis o autor desenvolver em seu livro, sendo fora de dúvida que ele quis ali
desenvolver qualquer tese. Tratamos de descobrir o fito do pensador em meio daquele
langoroso idílio e chegamos à conclusão final de que a sua era uma tese
garciológica ”.
Claro, José Veríssimo
situava-se acima dessa indigência mental: “‘Iaiá Garcia’, como ‘Ressurreição’
e ‘Helena’, é um romance romanesco, talvez o mais romanesco dos que escreveu
o autor. Não só o mais romanesco, como talvez o mais emotivo. Nos livros que
se lhe seguiram, é fácil notar como a emoção é, diríeis, sistematicamente
realçada pela ironia dolorosa do sentimento realista de um desabusado”. Veríssimo
percebeu por instinto de leitor familiarizado com “homens e coisas
estrangeiras”, que “Iaiá Garcia” era um romance vitoriano — até o
protagonista Jorge tinha “um nome romanesco”, nome de harmônicas inglesas
mais do que evidentes.
Formados na escola
descritiva de Alencar, os leitores da época, sem excluir os melhores,
viram-se, de repente, em face de uma nova concepção do romance, custando a
reconhecê-la e, mais ainda, a aceitá-la. Caberia a Capistrano de Abreu
refletir a perplexidade geral diante do exemplo mais desafiador: “As
‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ serão um romance? Em todo o caso são mais
alguma coisa”. Essa “coisa” exigia simplesmente um novo tipo de
leitor, o leitor para quem a literatura existe nela mesma, sem considerações
de qualquer outra ordem. Com corrosiva ironia, Machado de Assis encarregou o
finado Brás Cubas de responder “que sim e que não”: era e continua sendo
romance para uns, não o sendo para outros. Em Machado, a ambiguidade era a
forma específica de afirmação: pede-se aos espíritos de geometria que se
abstenham.
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