Apelo
ao bom senso
As dificuldades políticas pelas quais passamos têm claros
efeitos sobre a conjuntura econômica e vêm se agravando a cada dia. Precisamos
resolvê-las respeitando dois pontos fundamentais: a Constituição e o bem-estar
do povo.
Mormente agora, com 14 milhões de desempregados no país,
urge restabelecer a confiança entre os brasileiros para que o crescimento
econômico seja retomado.
A confiança e a legalidade devem ser nossos marcos. A
sociedade desconfia do Estado, e o povo descrê do poder e dos poderosos. Estes
tiveram a confiabilidade destruída porque a Operação Lava Jato e outros
processos desnudaram os laços entre corrupção e vitórias eleitorais, bem como
mostraram o enriquecimento pessoal de políticos.
Não se deve nem se pode passar uma borracha nos fatos para
apagá-los da memória das pessoas e livrar os responsáveis por eles da devida
penalização.
A Justiça ganha preeminência: há de ser feita sem vinganças,
mas também sem leniência com os interesses políticos. Que se coíbam os excessos
quando os houver, vindos de quem venham –de funcionários, de políticos, de
promotores ou de juízes. Mas não se tolha a Justiça.
Disse reiteradas vezes que o governo de Michel Temer (PMDB)
atravessaria uma pinguela, como o de Itamar Franco (1992-1994).
Colaborei ativamente com o governo Itamar, apoiei o atual.
Ambos com pouco tempo para resolver grandes questões pendentes de natureza
diferente: num caso, o desafio central era a inflação; agora é a retomada do
crescimento, que necessita das reformas congressuais.
Nunca neguei os avanços obtidos pela administração Temer no
Congresso Nacional ao aprovar algumas delas, nem deixo de gabar seus méritos
nos avanços em setores econômicos. Não me posiciono, portanto, ao lado dos que
atacam o atual governo para desgastá-lo.
Não obstante, o apoio da sociedade e o consentimento popular
ao governo se diluem em função das questões morais justa ou injustamente
levantadas nas investigações e difundidas pela mídia convencional e social.
É certo que a crítica ao governo envolve todo tipo de
interesse. Nela se juntam a propensão ao escândalo por parte da mídia, a
pós-verdade das redes de internet, os interesses corporativos fortíssimos
contra as reformas e a sanha purificadora de alguns setores do Ministério
Público.
Com isso, o dia a dia do governo se tornou difícil. Os
governantes dedicam um esforço enorme para apagar incêndios e ainda precisam
assegurar a maioria congressual, nem sempre conseguida, para aprovar as medidas
necessárias à retomada do crescimento.
Em síntese: o horizonte político está toldado, e o governo,
ainda que se mantenha, terá enorme dificuldade para fazer o necessário em
benefício do povo.
Coloca-se a questão agônica do que fazer.
Diferentemente de outras crises que vivemos, nesta não
existe um "lado de lá" pronto para assumir o governo federal, com um
programa apoiado por grupos de poder na sociedade.
Mais ainda, como o TSE (Tribunal Superior Eleitoral)
declarou que as eleições de 2014 não mostraram "abusos de poder
econômico" (!) [em julgamento encerrado no dia 9 de junho, não há como
questionar legalmente o mando presidencial e fazer a sucessão por eleições
indiretas.
Ainda que a decisão tivesse sido a oposta, com que
legitimidade alguém governaria tendo seu poder emanado de um Congresso que
também está em causa?
É certo que o STF (Supremo Tribunal Federal) pode decidir
contra o acórdão do TSE, coisa pouco provável. Em qualquer caso, permaneceria a
dúvida sobre a legitimidade, não a legalidade, do sucessor.
Resta no arsenal jurídico e constitucional a eventual
demanda do procurador-geral da República pedindo a suspensão do
mandato presidencial por até seis meses [a iniciativa precisa ser aprovada por
dois terços dos deputados] para que se julgue se houve crime de improbidade ou
de obstrução de Justiça.
Seriam meses caóticos até chegar-se à absolvição [pelos
ministros do STF] –caso em que a volta de um presidente alquebrado pouco
poderia fazer para dirigir o país- ou a novas eleições. Só que estas se dariam
no quadro partidário atual, com muitas lideranças judicialmente questionadas.
Nem assim, portanto, as incertezas diminuiriam –nem tampouco
a descrença popular.
O imbróglio é grande.
Neste quadro, o presidente Michel Temer tem a responsabilidade
e talvez a possibilidade de oferecer ao país um caminho mais venturoso, antes
que o atual centro político esteja exaurido, deixando as forças que apoiam as
reformas esmagadas entre dois extremos, à esquerda e à direita.
Bloqueados os meios constitucionais para a mudança de
governo e aumentando a descrença popular, só o presidente tem legitimidade para
reduzir o próprio mandato, propondo, por si ou por seus líderes, uma proposta
de emenda à Constituição que abra espaço para as modificações em causa.
Qualquer tentativa de emenda para interromper um mandato
externa à decisão presidencial soará como um golpe.
Não há como fazer eleições diretas respeitando a
Constituição Federal; forçá-las teria enorme custo para a democracia.
Por outro lado, as eleições "Diretas-Já" não
resolvem as demais questões institucionais, tais como a necessária alteração
dos prazos para desincompatibilização [de cargos públicos e eletivos por parte
de possíveis postulantes], eventuais candidaturas avulsas, aprovar a cláusula
de barreira e a proibição de alianças entre partidos nas eleições
proporcionais. Sem falar no debate sobre quem paga os custos da democracia.
Se o ímpeto de reforma política for grande, por que não
envolver nela uma alteração do mandato presidencial para cinco anos sem
reeleição? E, talvez, discutir a oportunidade de antecipar também as eleições
congressuais. Assim se poderia criar um novo clima político no país.
Apelo, portanto, ao presidente para que medite sobre a
oportunidade de um gesto dessa grandeza, com o qual ganhará a anuência da
sociedade para conduzir a reforma política e presidir as novas eleições.
Quanto tempo se requer para aprovar uma proposta de emenda à
Constituição e redefinir as regras político-partidárias? De seis a nove meses,
quem sabe?
Abrir-se-ia assim uma vereda de esperança e ainda seria
possível que a história reconhecesse os méritos do autor de uma proposta
política de trégua nacional, sem conchavos, e se evitasse uma derrocada
imerecida.
Folha de São Paulo, 26/06/2017
Fernando Henrique Cardoso - Sexto ocupante da Cadeira nº 36 da ABL, eleito em 27 de junho de 2013, na sucessão de João de Scantimburgo e recebido
em 10 de setembro de 2013 pelo Acadêmico Celso Lafer
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