O caos nosso de cada dia
Ultimamente assisti a dois documentários admiráveis. O
primeiro, de Camila Pitanga e Beto Brant, sobre Antonio Pitanga, um dos maiores
ícones do cinema brasileiro. O segundo se chama “Cinema Novo”, de Eryk Rocha, e
ganhou o prêmio de melhor documentário no último Festival de Cannes.
Ambos são filmes de amor. “Pitanga”, de amor à vida; “Cinema
Novo”, de amor ao cinema. E os dois se entrelaçam: Antonio Pitanga é o ator que
mais aparece em “Cinema Novo”. Sem a sua presença, não haveria tanta força
poética em “Barravento”, primeiro longa de Glauber Rocha, nem em “A Grande
Cidade”, de Cacá Diegues. Pitanga deu corpo e alma ao Cinema Novo, inaugurado
por Nelson Pereira dos Santos e agora recontado por Eryk com poesia e
paixão.
O problema é que, além da admiração, tenho grande amizade
tanto por Pitanga, quanto por Eryk. É aí que mora o perigo.
Sempre que me
encontro com Eryk, por exemplo, temos a compulsão de ir ao botequim, encher a
cara e trocar ideias até as quatro da manhã. Fazemos planos para as próximas
encarnações, sonhamos com aventuras cinepoéticas, que já nos renderam um filme
chamado “Miragem em abismo”. Nem tivemos tempo de exibi-lo direito, porque
estamos sempre pensando no próximo.
Com Pitanga, a barra também é pesada. Somos amigos desde os
anos 70 e, sempre que nos reencontramos, é como se a conversa tivesse parado na
véspera. Sem falar que, ao rever um amigo, a gente se sente tão feliz que é
capaz de fazer coisas extraordinárias, às vezes desastrosas.
Num desses reencontros, nos anos 80, o Pitanga me convidou
para jogar uma pelada no campo do Chico Buarque, no Recreio. Claro que topei.
Esclareço que já fui craque da pelota — infelizmente, só na imaginação. Aos 10
anos, supunha que era capaz de fazer as jogadas do Pelé ou do futuro Neymar. Na
realidade, era um perna de pau. Fui sendo rebaixado ao longo de um ano de
carreira, de gênio criativo a zagueiro de baixo nível. Acabei expulso não só de
meu time, como também do campo, porque, não bastasse a falta de talento com a
bola, me faltava compostura.
Provavelmente o fracasso me subiu à cabeça, tanto que eu não
me lembrava mais do passado e estava de novo ali, pronto para entrar no gramado
contra o time do Chico, o lendário Polytheama, que, segundo a crônica
esportiva, jamais perdeu em casa.
O jogo começou. Assumi a lateral direita e, como jogador
moderno que supunha ser, comecei a apoiar constantemente o ataque. Depois dos
dez minutos de jogo, no entanto, vi tudo preto ao meu redor. Também havia me
esquecido que passara os últimos 15 anos sem fazer qualquer exercício físico, a
não ser os imprescindíveis. Fui retirado, de maca, e deitado à margem do campo,
de onde assisti à vitória do Polytheama e ao enterro de minha última
quimera.
Pitanga outro dia operou o joelho, mas tenho certeza de que
continuará brilhando nos campos do cinema e do futebol. E o Eryk é sempre a
nossa esperança de posteridade cinematográfica.
O Globo, 14/05/2017
-----
Geraldo Carneiro - Sexto ocupante da Cadeira 24 da ABL,
eleito em 27 de outubro de 2016, na sucessão de Sábato Magaldi e recebido em 31
de março de 2017 pelo Acadêmico Antonio Carlos Secchin.
Nenhum comentário:
Postar um comentário