Farinha do mesmo saco
A expressão popular lusitana refere-se a iguais que estão
juntos como sendo vinho da mesma pipa. No Brasil, falamos em farinha do mesmo
saco. Nos últimos dias, temos discutido políticos do mesmo caixa. Ou não?
Claro que sim. E claro que não. Também não são iguais os que
os classificam de uma forma ou de outra. Não só pela autoridade de que se
revestem ou por eventuais simpatias partidárias. O fato é que diferem uns dos
outros. Igualmente são diversos entre si os jornalistas que reportam suas
declarações — e não apenas pelos jornais para os quais escrevem ou por causa
dos candidatos em que votam.
No entanto, é indispensável que o país neste momento debata
essa questão. Dela não vão depender somente as decisões sobre fatos passados.
Mas uma análise clara servirá para orientar medidas que ajudem a balizar uma
reforma eleitoral que melhore o futuro. E a primeira coisa a fazer é discutir
com clareza e transparência, lançando luz sobre o tema, de modo a que possamos
entender o que se passa, sem deixar buracos de ratos nos desvãos mais escuros.
A esta altura, já deveríamos estar todos tão escolados que
nem se precisaria repetir o óbvio. Mas os esquemas e mecanismos são
propositadamente complexos, para embaralhar pistas. Então, insistir em alguns
pontos básicos nunca é demais. Situações diferentes podem exigir punições
diferentes.
1 — Ser mencionado por ouvir dizer, apontado por um delator,
ou investigado não é a mesma coisa. E ser denunciado, acusado ou transformado
em réu também é outra.
2 — Até recentemente, doação de empresa era perfeitamente
legal até o limite de 2% de seu faturamento. Cada partido ou candidato podia
pedir quanto quisesse e dentro desse limite. Desde que tudo fosse declarado,
nenhum problema, por mais que se possa especular sobre os interesses de uns e
outros na prática.
3 — Qualquer caixa 2 é ilegal, seja de grande empreiteira ou
do botequim da esquina. É delito fiscal. Significa que um dinheiro não foi
declarado e não pagou imposto. Tem punições previstas em lei, para quem o
cometa. Mas em si ainda não é corrupção, embora possa se ramificar em vários
crimes. Todos esses precisam ser expostos e castigados na forma da lei. O caixa
2 pavimenta o caminho para eles. Pode ocultar conflito de interesses e tráfico
de influência. Pode ser forma de encobrir de um mandachuva a real preferência
do doador, ou de ceder a achaque ou chantagem (ao que se sabe do Brasil
profundo, práticas corriqueiras em prefeituras). Pode ser pagamento de propina
por favores recebidos ou a receber — seja por meio de projetos de lei
favoráveis, emendas a MPs e PECs, isenções fiscais, superfaturamentos, aditivos
a contratos, e o mais que andamos descobrindo.
Nessas descobertas que horrorizam as pessoas de bem, vai se
delineando o crime perfeito. Aparentemente, não surge como caixa 2, e até pode
parecer inocente. A empresa (ou as empresas, em rodízio, conforme as regras que
regem o cartel) recebe por uma obra ou serviço muito mais do que o necessário
para executá-lo. Esse “a mais”, devidamente contabilizado no caixa 1 oficial,
transforma-se em doação eleitoral legal e declarada. Ou seja, sai dos cofres
públicos e vai para um partido ou candidato por mãos de uma empresa, mas no
caminho é aprovado e legalizado pela Justiça Eleitoral que, sem desconfiar,
atua como a lavanderia do dinheiro sujo.
Distinguir isso com clareza é essencial para não relevar
práticas desse tipo. Juntar tudo no mesmo saco sem distinguir nuances atrapalha
a democracia, porque engole a alteração de resultados eleitorais com base em
mentiras, construídas em campanhas milionárias. E em mecanismos de cobertura
midiática que vão além dos boatos, contranarrativas, fatos alternativos e
outros exemplos de pós-verdade que assolam nosso tempo.
Nesse sentido, um truque nivelador eficiente é o da falsa
equivalência, que dá pesos iguais a coisas diferentes. Na campanha americana,
para bater em Trump pelo conjunto da obra, espancou-se com igual força Hillary
Clinton por seus e-mails. Os bem intencionados apoiadores de Bernie Sanders não
admitiram trabalhar por ela. Trump acabou eleito.
Ainda agora, muitos dos que com razão caíram em cima da fala
presidencial no Dia da Mulher, retrógrada e fora de moda, são os mesmos que
ignoraram a piada ofensiva e asquerosa de Lula, dizendo que sua auxiliar de
confiança Clara Ant achara que cinco policiais em sua casa eram um presente de
Deus. Esta semana, um cronista chegou a citar o discurso de Temer sob a mesma
pecha de selvageria e violência em que comentava o crime do goleiro Bruno.
A que serve essa veemência? É útil à democracia? Todo
político é igual? A que salvador da pátria essa ira virulenta pode nos
entregar?
Assim fica difícil. Mesmo se for tudo farinha do mesmo saco,
o inteligente é distinguir farinha de trigo e farinha de joio. Desse modo,
ganhamos eficiência para defender a democracia no imprescindível debate sobre
reforma eleitoral. O que é outra conversa, que fica para outro artigo.
O Globo, 18/03/2017
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Ana Maria
Machado- Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita em 24 de abril de
2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de agosto de 2003
pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em
2012 e 2013.
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