Um Retrato
Itabuna evolui. Lafayette de Borborema, passo a passo, acompanha o seu
progresso. A vida econômica é pujante, mas a violência continua; há outra forma
de agressão, não à pessoa humana, mais ao seu patrimônio: o caxixe.
Lafayette de Borborema, na tribuna do Júri, ou nas caladas da noite, debruçado
sobre a sua mesa de trabalho, caneta na mão, defende, acusa, pede justiça. O
ideal que o fez aportar nesta terra de Itabuna aqui o manteve. Jamais se
acovardou diante das ameaças dos prepotentes, jamais transigiu. Com uma grande
banca de advocacia, nunca se deixou cegar pela ambição. A riqueza, a usura do
dinheiro não faziam parte de sua vida. Aquele cacau, que era o desvario de
muitos, nunca o fascinou. Nunca se aproveitou da angústia e do desespero de um
constituinte para dele tirar proveito, tomando-lhe algum bem. A sua riqueza
eram as qualidades morais, com que sempre pautou a vida e a profissão. O
seu ideal era ser fiel à sua vocação de advogado. Viveu num meio violento,
condenou destemidamente bandidos no banco dos réus, enfrentou “chefões”
políticos. Em toda a sua vida nunca usou uma arma, porque a sua grande
arma era a força moral com que sempre se impôs e se fez respeitado.
Inteligente e preparado, mas modesto nas suas atitudes, gostava mais de ouvir
do que de falar, dando simplicidade à sua conversação. Muito calmo, discreto,
cortez, era incapaz de ofender deliberadamente a qualquer pessoa, por
mais humilde que fosse. Na tribuna do Júri, mesmo acusando fortemente,
procurava não ofender, embora, quando preciso soubesse ser mordaz e
satírico. Era impressionante a paixão que tinha por uma causa difícil; quanto
mais embaraçada a questão, mais ele a abraçava. Os honorários pouco o interessavam,
valia a vitória na contenda. A assistência gratuita ele dava com o mesmo
interesse, esforço e dedicação de uma causa remunerada. Poder ajudar a um
constituinte pobre, salvar-lhe a “burara”, a casinha ou o pequeno pecúlio,
valia-lhe mais do que qualquer remuneração monetária. Quando ele
completou 50 anos de formatura, numa festa em sua homenagem, o Bel. Bartolomeu
Brandão pronunciou um discurso onde há um trecho que diz:
“Na luta pela justiça, pelo reconhecimento dos direitos individuais postergados,
a advocacia, que não é apenas o eco profundo dos dolorosos dramas humanos, a
advocacia se realiza, sobretudo, como uma força poderosa em defesa da
esperança, da vida e da descendência dos que sofrem”. Essa advocacia Lafayette
de Borborema a realizou até o fim de sua vida.
Espírito independente, nunca bajulou políticos nem nunca pleiteou cargos, os
que ocupou foram por eleição ou a convite. O “Jornal de Itabuna”, que fundou em
1920 foi uma das armas com que se bateu. Lutava com lealdade, sem paixão e sem
ódio, a bem dos interesses da terra e da sociedade. Durante os 58 anos que aqui
viveu, a despeito das lutas no campo político e profissional que enfrentou,
jamais teve um inimigo pessoal. Durante 60 anos amou e se dedicou à advocacia
com o mesmo entusiasmo e idealismo de recém-formado. A vida laboriosa talvez
fosse o segredo da saúde física que desfrutou até à velhice e da jovialidade de
espírito que lhe dava a alegria e disposição com que enfrentava cada dia.
Aqui
constituiu família. Casado com dona Odília de Borborema, teve seis filhos, dos
quais uma menina faleceu aos seis meses de idade e duas outras logo após o
nascimento. Sobreviveram-lhe três, dos quais um, Péricles de Borborema
(advogado) faleceu três anos e meio após ele.
Não
era católico praticante, mas um homem de grande fé religiosa. Temente a Deus,
procurava sempre fazer o bem e, na educação dos filhos se fazia questão do
aspecto religioso, muito lhes incutiu também o amor à terra.
Não
tinha amor a dinheiro. Dinheiro para ele representava apenas alimentação farta,
abundante em casa e bons colégios para os filhos, no que não media sacrifícios
em pagar, ainda, para eles, cursos de piano, de pintura e o que mais quisessem.
E só. Mas aos livros e à papelada dele dedicava um amor que chegava às raias da
adoração. No seu escritório, sobre mesas e cadeiras, os papeis subiam em pilhas
incríveis e ai de quem mexesse em um deles! Também tinha de tudo, porque tudo
guardava – jornais, boletins de propaganda, almanaques, cartas, recibos,
convites que iam se juntando e se multiplicando em pilhas através dos anos.
Quem entrasse em seu escritório tinha por certo a impressão de um caos, mas
para ele aquilo era a ordem perfeita, sabia o lugar certo de cada pedaço de
papel. Quando se rasgava um papel com algum a coisa escrita a ele, dava a
impressão de que se estava cometendo um crime.
Sempre procurando se atualizar dentro
da profissão, comprava os livros de Direito que lia e estudava até altas horas
da noite, sem tédio, com a disposição de um jovem estudante.
Sentia-se que ele amava aqueles livros; a gente podia perceber o carinho com
que os olhava, o cuidado que tinha em não rasgar ou machucar uma página, mirava
cada um como se fosse um objeto de veneração.
Amante das grandes caminhadas, quando ia a Salvador a negócio ou a passeio, que
ele chamava de “recordação e saudade”, evitava muitas vezes tomar transporte,
pelo prazer de andar a pé. Subia e descia ladeiras, já na casa dos setenta
anos, com a disposição de um adolescente. Visitava a sua velha Salvador,
revendo as ruas onde morou, onde passou a sua infância e adolescência, revendo
igrejas, o cemitério onde jaziam os parentes falecidos, as praias da Boa Viagem
onde, menino, veraneava com a família, - tudo ele revia porque tudo fora
guardado no coração. Mas esses passeios só valiam se fossem feitos a pé!
Não
bebia, não fumava, nunca jogou. Mas tinha um passatempo que bem se coadunava
com o seu temperamento calmo e ao qual se dedicou desde jovem: colecionar
selos, tendo organizado bonitos e bem cuidados álbuns.
Passaram 58 anos desde aquela tarde de março de 1907, quando aqui chegou aquele
jovem de 24 anos incompletos, cheio de idealismo e coragem para lutar.
Não
buscou a riqueza dos cacauais de frutos dourados, à cuja sombra muitas lágrimas
foram vertidas e muito sangue derramado.
Não
buscou a vaidade do poder, aquele poder que avilta quem o possui e atrai os
bajuladores.
Buscou apenas um ideal, e esse ideal ele encontrou, a ele se prendeu, por ele
lutou e deu uma vida.
Realizou-se no exercício da profissão e em poder servir à terra que adotou e
amou, tendo participado de todos os movimentos ligados aos interesses de
Itabuna.
Foi
Provedor da Santa Casa de Misericórdia de Itabuna, tendo feito, pelas colunas
do seu jornal, várias campanhas em favor desse hospital nos seus primeiros anos
de existência. Membro da Irmandade da Santa Casa, tendo feito parte da sua
diretoria. Delegado de Polícia. Presidente da Ordem dos Advogados, Subseção de
Itabuna. Consultor Jurídico da Prefeitura Municipal. Secretário da 1ª Comissão
pró-construção da nova Igreja Matriz de São José. Por ocasião das suas bodas de
ouro de formatura, foi homenageado pelo Lions Club de Itabuna, através do seu
presidente, o Juiz Dr. Lafayette Veloso, que o fez sócio honorário.
Pioneiro no setor de sua atividade, quando fez 50 anos de formatura,
Itabuna prestou-lhe grandes homenagens; dentre as muitas que recebeu há uma
também muito bonita e significativa, vinda de Salvador. Foi um pergaminho
assinado por todos os juízes que passaram pela Comarca de Itabuna, com os
dizeres que bem retratam o advogado que ele foi:
“ Lafayette de Borborema,
Ao
comemorares teus cinquenta anos de formatura dedicados ao Direito, nessa
laboriosa Comarca de Itabuna, onde foste o Pioneiro na Advocacia, modelo de
perseverança, exemplo na conduta, jamais a ambição cegando teus olhos sempre
voltados para a JUSTIÇA e a VERDADE, nós, teus colegas, Magistrados que por aí
passamos, guardando nitidamente a impressão de seres um verdadeiro APÓSTOLO DA
ADVOCACIA, enviamos com esta Mensagem a nossa adesão às manifestações deste
dia.
Cidade do Salvador, Bahia, 11 de dezembro de 1955.
Ass.:
Clóvis Leone
José
Desouza Dantas
Cleóbulo Cardoso Gomes
Agenor Velosso Dantas
Dan
Moreira Lobão
Alfredo Luiz Vieira Lima
Moreira Caldas
Altino Serbêto de Barros
Barros Pôrto
Geminiano
Conceição.”
Aquela promessa feita à família, em Salvador, de que retornaria dentro de um
ano, caso não suportasse as vicissitudes e perigos da Vila, estava agora muito
no passado. A terra de tantas violências era, também, de alegrias compensadoras
e de muito calor humano. E a terra o fascinou. Aqui ele fincou raízes, cresceu,
frutificou e permaneceu, participando das alegrias, tristezas, sonhos e
realizações da terra que viu nascer, crescer e que tanto amou.
Quando, na noite de 25 de junho de 1965, aos 82 anos de idade, Lafayette de
Borborema fechou os olhos à luz do mundo, foi com a mesma serenidade com que
sempre viveu. Morreu com a consciência tranquila de quem só praticou o bem.
Respeitado, acatado por todos, amado estremecidamente pelos seus, deixou aos
filhos um nome honrado e o exemplo de suas grandes virtudes.
A sua vida podia ser resumida nas palavras do Advogado Bartolomeu Brandão quando,
num discurso, a ele se referiu:
“Lafayette de Borborema foi um trabalhador da grandeza de Itabuna, porque
Itabuna não se fez apenas pela contribuição material dos construtores da sua
economia. Fez-se, também, pelo concurso, pelo trabalho de outros obreiros, de
outros valores humanos. Valores que, na fase informe da sua organização, aqui
surgiram com a maravilhosa mensagem da cultura, da ordem, da beleza, da
harmonia. E Lafayette de Borborema foi um desses valores”.
(Lafayette de Borborema - UMA VIDA, UM IDEAL)
Helena Borborema
----------
HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora de
Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal
e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de
Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município. (A autora)
Conhecida professora itabunense, filha do Dr. Lafayette
Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro
em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para
testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a
professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples,
plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma
gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na
terra’. (Cyro de Mattos)
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário